quinta-feira, 1 de abril de 2010

- Um poema a dizer do Amor de Miguel Pires Cabral -


AMOR & MALTE


O malte caía estranhamente doce e sem gelo,
por entre um cenário de música,
notícias e uma vela que arde
julgando-se assim purificar o ar
[ressoado pelo tabaco.

Mas o trago mais, era o foco centrado no copo,
como a palavra ou a acção fulcral de tudo
quanto vês e ouves e depois te envolves.
Esperei pelo temporal, vi a fruta apodrecer

numa fruteira ignorada pelo despropósito
de uma qualquer rotina marginal.
Esperava também pelo fogo do teu corpo,
que depois se entranhava no meu.

Já não havia muitas passas por dar nos cigarros
e o copo vazio, desalojado de ardor,
indicava-nos o percurso, essa busca quiçá infundada,
por esse raro «objecto», réu ou arguido
[a que chamamos de «amor».

Miguel Pires Cabral

- A maestria do fazer poético de José Félix _



Do Fogo - Um Olhar

um olhar

um fogo frio é o gume aceso
da fala que se despe de seus lábios,
é a substância, o pó que poliniza
o beijo fértil no vaso de azálias.

a água, sede no rio da planta,
viaja murmúrios e ventos e folhas
numa tarde que o rosto encontra, enfrenta
a ressa de sol que atravessa os galhos.

catulo desejava beijos mil,
um cento só e mais mil beijos de lésbia
e se perdessem ambos no conto útil.

um olhar basta-me para que a névoa
espelhe o lume brando, um fogo lábil
preso numa palavra nua, sábia.

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A Penumbra


de repente misturo-me
na penumbra
que entra sem pedir.
intrusa
conquista a casa, cada
geometria da habitação
perdem-se as arestas
os espelhos reflectem sombras
no cio do silêncio.
a palavra
só a palavra renasce
a estrutura dos objectos.
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Porque se morre de amor


procurou-se nos livros já antigos
e até nos mais recentes a explicação
da atitude de querer morrer de amor.
porque é de um gesto que se trata,
morrer de amor é ter o pressentimento
da impermanência do outro. sem memória não
se resgata a beleza de um sorriso nem
a brevidade do sexo extasiado,
na dádiva constante do corpo e
de um roçar simples dos sentidos.
e morrer de amor é viver do amor
no último grito dado na catedral,
no eco das naves de pedra, polida
de cânticos e sons e vozes velhas.
direis vós. porque se morre de amor?

há uma flor sem uma pétala viva
por isso corta cerce com as mãos
o fio de sol que liga ao caule novo.
não importa que a seiva escorra para a boca
se os lábios frios não polinizam o beijo
que a vida importa de outro corpo aberto.

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Outonal

chove.

O teu corpo junto
ao meu desliza táctil
a rima no rumor da água.

a árvore molhada
goteja campainhas na folhagem
caída.

Ouve-se o vento
a fala, o sopro na seda dos cabelos.

As mãos abraçam o tronco
num beijo de chuva.

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josé félix

-O tanto azul na poética de José Dias Egipto-


O Lápis-Lazúli Filial


A ordem
foi dada
para que se erguesse
o espelho
em frente
à grande sombra...

Que descesse
a onda
ao grão de areia
para que a barrasse...

Que pudesse
haver um olhar
do avesso,
talvez um recomeço
ou um simples testemunho
que ficasse...

Havia por fim
que dar um canto
ao infinito,
cruzar o horizonte
com as mãos agudas
de um grito...

Vencer somente
a nossa cruz !

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Dúvida


Quem és tu,
esquina oblíqua
da incerteza,
garganta de sombras
e de esperas prometida,
que gelas a alma
entontecida
e cais em ledo cio,
como janela
mil vezes batida
e aberta num vazio? ...


Quem és tu,
ave ferida
num abrir e fechar de asas
aflito,
na argúcia de as suster
só para ninguém ver
que abrasas e sangras
de um vício nunca dito?...


Quem és tu,
azul imenso de mar
e de céu,
frívolo e materno,
de formas fechadas
e redondas?...


Sabê-lo-á
só quem rasgar colérico
esse véu,
só quem o mar
souber fechar
em suas ondas!...

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Uma espécie de mar


Deixa-me ser o mar
das imagens sucessivas
dos teus dias.
Aquele que se pudesse colar à tua pele
como um ferrete indolor,
como uma outra textura onde se misturam
os sabores que apenas advinhas
atrás dos gestos banais que te procuram...

Uma espécie de mar mesmo às escuras
num movimento ondulante de memorias,
que tu sentisses apenas como espuma,
que te envolvesse em torvelinho
sem te levar ou te prender
e se projectasse em ondas mansas
numa canção de embalo ou verso
para te banhar o coração sem o saber...

Deixa-me ser esse vitral azul,
irrepetível mas constante,
essa espécie de mar em extinção
onde tu possas imaginar o que quiseres,
no limite das forças da tela da jornada,
uma projecção visual dos teus prazeres
ou, tão somente,
o debruar furtivo de minha alma
nos desenhos irreflectidos
da nossa paixão atribulada !...

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José Dias Egipto

Maria João Oliveira-


O Não-lugar de Montantu

Habitava o exílio, há muito, e enfrentava ainda as emboscadas da dor, à procura de uma luz na penumbra. A sua casa era uma velha bicicleta que tinha os seus próprios caminhos. Por vezes, levava-o à cubata de mãe Felismina que sorria, ao ouvir o som dos seus passos. Uma cubata que ele tinha erguido, a curta distância de um rio de pontes destruídas por armas, finalmente, silenciadas. Estava cansado de viver ao relento, com mãe Felismina e Runguinha, sua irmã. Um grupo de militares afectos à Unidade da Guarda Presidencial tinha queimado as cubatas e todos os haveres da população, para ali ser construída a pista de um novo aeroporto. Nem as enxergas, nem as cabaças para a água e outras bebidas, nem o almofariz de madeira de mãe Felismina tinham escapado à sanha dos militares. Mas o que mais lhes doeu foi a perda do único retrato de pai Joaquim, caldeireiro ambulante, homem corajoso e destemido na defesa dos mais pobres, que fora vítima de uma emboscada, durante a guerra.
- Montantu, filho, p´ra onde vais?
- P´rá cidade, mãe! Se não for, morremos de fome! Volto p´ró mês que vem…
Ao ouvir aquelas palavras, mãe Felismina ficou em silêncio e apagou-se, mais uma vez, num canto escuro da cubata, com as mãos cruzadas sobre um colo que também tinha embalado Daniel, o filho mais velho, que lhe contava tudo, até desaparecer, para sempre, no negrume da guerra. Na sua alma, latejava um pó acumulado de ilusões baleadas.
- Mãe, eu sei que Montantu lhe faz falta…Desculpa ser tão pequena! Mal posso com água e lenha… estendo mal roupa no capim… Me queria mais alta e velha como a senhora…
- Não diga isso, Runguinha! Deus lhe castiga! Não pôde meninar… e agora… queria ser velha de bengala como eu?! Estou cansada de estar viva, filha… Ah, e julga que pode desobedecer ao tempo? Não há precisão, Runguinha. Ele toma conta…
Montantu Luisão escutava-as, em silêncio, com o coração a bater-lhe violentamente, no pescoço. Os seus olhos negros pareciam duas brasas acesas. Ergueu-se, calçou apressadamente as sandálias e deu alguns passos em direcção à porta. Durante breves minutos, contemplou o rio, lá em baixo, como quem se despede, mas começou a caminhar em sua direcção. Transpirava, abrasado de calor.
- Juro que esta magreza de vida vai acabar! - murmurou. – Ah, Daniel… como tu e o Alfredo… me fazem falta!...
De súbito, estremeceu. De um bolso dos seus calções, caíra um pequeno caderno de capa preta que se afundou na areia quente da tarde. De imediato, dobrou os joelhos e ergueu-o, devagar, como se tivesse, nas suas mãos, um objecto sagrado. Apertou-o de encontro ao peito e voltou a colocá-lo no bolso. Ainda em sobressalto, olhou a linha do horizonte, como se ele tivesse paredes e precisasse de encostar o seu corpo. O sonho enchia-lhe os ouvidos de gritos de aves e rumor de ondas. Aspirava, como se fosse pela última vez, o cheiro quente do pequeno rio e aquele silêncio universal, cortado, de vez em quando, pelo canto de uma ave. Naquele momento, Runguinha correu para ele e abraçou-
-o pela cintura.
- Melhor não ir, Montantu…
O jovem mulato sorriu e lembrou-se dos tempos em que a sua irmã caçula lhe pedia que apanhasse estrelas para ela. Pensativo, acariciou-lhe os cabelos crespos e negros, mas ao colocar-lhe as mãos nos ombros, sentiu que uma ferida se abria, dentro dele, e mal reteve um grito. Os ossos roçavam-lhe a pele, mais do que nunca, sob o vestido azul de chita.
- Tem que ser, Runguinha…
Fustigado pelo sol quente e vermelho de África, Montantu Luisão partiu, na sua velha bicicleta, rumo aos parques sombrios da grande cidade, onde encontrava o pão que o sujava por dentro e o atirava, uma vez mais, para um exílio, em que se sentia fracturado e objectivado. Carregava o não - lugar desde a infância e a solidão tinha dedos metálicos, à volta do seu pescoço. Dedos que, no entanto, o empurravam para a busca de um lugar onde o seu ser estilhaçado pudesse libertar-se daquele sistema de morte e alcançar a “civilização da ternura”, de que lhe falava o missionário Alfredo, raptado pelos rebeldes, quando levava alimentos, para uma povoação faminta, no interior do mato. Tinha saudades do seu abraço, um abraço que lhe abastecia todos os vazios. E também daquele sorriso que fazia nascer a vida e florescer a esperança. Jamais podia esquecer as missas que ele celebrava, às escondidas, sob a abóbada das estrelas, no mato iluminado por archotes. Quando a notícia da sua morte correu célere pelas montanhas, sentiu-se culpado de ainda não ter pisado uma mina. Se soltasse, de repente, o grito que tinha dentro de si, encheria o mundo.
Um dia, também ele foi raptado, em plena estrada de terra batida. Sentia ainda o sangue quente do missionário Sílvio Fiorini que fez do seu corpo escudo, para lhe salvar a vida. Alguns meses depois, o seu irmão mais velho era assassinado. Pouparam a vida de mãe Felismina e Runguinha, mas as sementes e as ferramentas foram pilhadas. E colocaram, no ombro de Montantu, uma arma, cujo peso era uma espécie de ligadura que ainda o comprimia por dentro.
Mais do que nunca, sentia a urgência de partir. Porém, baloiçava entre dois pólos: a terra e o mar. Amava aquela terra vermelha e o cheiro dela, mas estava cansado de habitar, na sua própria pátria, um exílio permanente. Achava que o seu jovem país não era “inviável”, como muitos diziam. Contudo, aquela urgência corria dentro dele como uma hemorragia que já não podia deter. Sabia que aquele sonho já tinha assassinado milhares de africanos, mas comprou um lugar numa embarcação e partiu rumo à Europa.

Cheirava, finalmente, a mar. Porém, Montantu Luisão sentia a angústia como uma abóbada escura por cima dele, a separá-lo das cores, dos sons, dos cheiros de África… Olhava o céu alto e mudo, como se procurasse uma resposta. O sol brilhava sobre as ondas de um mar nervoso, inquieto, espicaçado pelo vento. As tábuas do barco rangiam debaixo dos pés e, à sua volta, corpos esqueléticos de homens, mulheres e crianças, disputavam o pequeno espaço do convés. Ao olhar aqueles rostos parados, esculpidos por longos anos de guerra, paciência e fome, deixou escapar uma lágrima.
Naquele momento, uma menina mulata, de vestido amarelo e olhos claros, ergueu-se, avançou para ele e ofereceu-lhe, em silêncio, um pequeno ramo de flores brancas, já murchas. Uma trança comprida aparecia debaixo de um lencinho vermelho de bolas pretas. O seu sorriso tinha a frescura de uma nascente de água e a beleza da inocência.
- São “beijos de mulata”… - esclareceu a mãe da criança, com ar de quem pede desculpa. Parecia que aquelas flores tinham nascido de uma dor calada que todos queriam esquecer. Por isso, se escondiam dela, tapavam os ouvidos, fechavam os olhos…
Movido por um assomo de afecto, Montantu dobrou os joelhos, tomou o rosto da menina entre as mãos e, em seguida, abraçou-a sem conseguir articular palavra. Apenas se ouviam as ondas a bater no casco da embarcação. Olhou à sua volta e apercebeu-se de que os seus companheiros de viagem sorriam, como se, naquele momento, o cheiro do suor e da angústia se tivesse diluído nas águas.
Naquela noite, conseguiu dormir algumas horas, e, ao acordar, reparou que o mar estava sereno, com a lua a espreitar através das nuvens. Porém, sentia, cada vez mais, a fome e a sede da distância. Lembrava-se da tristeza de mãe Felismina, do doce sorriso de Runguinha, dos amigos que andavam em muletas e daqueles que rasgavam as mãos, na dureza das minas e ficavam sepultados nos buracos, para sempre. Os seus olhos negros tinham voos de pássaro aflito. Levou a mão ao bolso, para sentir a textura acolhedora do caderno de capa preta, e para que a esperança entrasse na sua alma e já não saísse... Um dia, havia de voltar. Mais uma vez, abriu o caderno e, com o som do mar como pano de fundo, começou a ler, em voz baixa, a primeira página de um livro que não chegou a ser concluído:

Um cheiro que não se pode descrever, nunca se esquece. Entranha-se em nós para o resto da vida. E o teu cheiro, Mãe - África, acompanha-me e suaviza as minhas dores. Em ti, escuto o canto magoado da sobrevivência. És fogo que me atrai e transforma. Dás-me
as asas de que preciso, para subir, bem alto, por cima do vazio que me cortava, lá longe, como fio de navalha.
Os teus meninos pisam minas, ardem de febre e morrem de meningite, malária, diarreia. Os teus meninos têm a barriga inchada e os olhos fundos. O teu chão tem milhares de cruzes e milhares de corpos incompletos que gostavam de dançar Kizomba.
E sei que estás cansada de transformar em lenha as árvores que te davam frutos e sombra, porque não podes pagar o preço exorbitante de uma bilha de gás.
No entanto, agarras-te, com todas as tuas forças, a qualquer possibilidade de recomeço. Quando tens de te refugiar num acampamento, ergues-te e plantas flores, à sua volta. Flores e legumes que os soldados arrancam e levam. E quando, mais uma vez, te deixam de mãos vazias, procuras sementes, de novo…Por isso, quem sente o teu cheiro, não pode mais ignorar a viagem que ainda não fez, o convite do barco, o apelo do mar, o chamamento das tuas feridas…
Há quem pense que não tens asas, que não tens futuro, mas tu amas, Mãe-África! Por isso, transformas os obstáculos em trampolins. E os teus tambores fazem estremecer os mais cépticos. Um dia, poderás fixar os vampiros, nos olhos, e eles acabarão por recuar.

Agora… vou dar uma aula na escola da Missão. Amanhã, continuarei a escrever, para ti, Mãe - África…

Alfredo Rebelo, missionário

- Mas não escreveste mais, meu amigo… - murmurou Montantu, fechando o caderno, com a saudade cravada no peito como lâmina afiada. – No dia seguinte, foste raptado por homens armados...
Naquele instante, sentiu um arrepio, como quem entra numa estranha dimensão, ao ver que o sol se tinha escondido, subitamente. Em poucos minutos, surgiram nuvens carregadas de chuva e ventos ciclónicos. O ar arrefeceu e o mar rugia sedento de vítimas. A embarcação estalava com as investidas das ondas. Todos temiam o excesso de peso. E não tinham equipamentos de sobrevivência. Soltavam gritos, pedidos de socorro, mas só o estrondo das vagas lhes respondia. Já perto da costa, a embarcação afundou-se. E as pessoas morriam afogadas e feridas pelas tábuas desfeitas. Montantu sentiu-se arrastado a uma profundidade de quinze pés, mas, com duas fortes braçadas voltou à superfície. A menina… a menina do vestido amarelo, meu Deus! E o caderno... o…caderno… Deixou-
-se levar pelas vagas, mas, de repente, virou-se de barriga para baixo, tentando nadar para a costa, com todas as forças que lhe restavam. Uma corrente gelada atravessou-lhe o corpo, mas o seu desejo de viver levava-o a suportar, com energia, o intolerável. Pedia socorro, mas tentava libertar-se do pânico, para sobreviver.
De súbito, viu dois botes que vinham em auxílio dos náufragos, mas a boca encheu-se de água e, naquele momento, começou a desfalecer. Chocou contra qualquer coisa que já não identificou, mas ainda se apercebeu que o retiravam da água. Perdeu os sentidos, naquele instante. Alguns minutos depois, abriu os olhos.
- AL…ALFREDO!... Ah, o teu abraço! Estou… morto, não é verdade? Vieste… buscar-me, meu amigo!
- Não, Montantu Luisão! Nós estamos vivos, acredita! E não adoeceste! Como é possível?! Estou no Centro de Acolhimento, de Lampedusa, há muito. Está sobrelotado… - disse Alfredo, cabisbaixo, apreensivo, com os olhos verdes húmidos. - Vá, amigo, estás a tremer de frio. Vamos mudar de roupa.
Com o auxílio de um jovem tunisiano que já o tinha ajudado a salvar inúmeras vidas, Alfredo vestiu-lhe, rapidamente, um quente fato de treino, calçou-lhe uns ténis, secou-lhe o cabelo com uma toalha…
- E agora vamos ao refeitório… -disse, já em terra firme.
- Não… não posso… acreditar! Não te mataram?! – E o jovem ergueu-se, apoiando-
-se no ombro do amigo, com a felicidade a brilhar-lhe no rosto magro, de pele curtida pelo sol de África. - Não te mataram?! – repetia, atónito, cheio de júbilo, com a brisa do mar a sacudir-lhe os cabelos.
- Foi um boato! Os raptores acharam que eu tinha jeito para tratar dos seus feridos.-
- respondeu Alfredo, com um sorriso que lhe iluminou o rosto comprido de barba grisalha. – Só me libertaram, quando a guerra acabou.
- Tenho medo de ser deportado… Não quero perder-te, outra vez…
- Não vai ser fácil, mas confia em mim, amigo. Aqui, há turistas a tomar banhos de sol e cadáveres a boiar, à espera da polícia… As pessoas têm receio de falar. E há muitos imigrantes que são expulsos…Mas tu vais estar na ilha, só uns dias. Hás-de conseguir, amigo! Dobraste o cabo, terás a Índia! Vou contigo, mas ainda volto, porque há muitos naufrágios por aqui…
Naquele momento, o jovem mulato respirou fundo e, com um aperto na garganta, olhou o horizonte, no exacto ponto em que o mar se une ao céu. – Quando voltaria a abraçar mãe Felismina e Runguinha?
- Um dia, voltaremos à nossa Mãe - África, Montantu… Um cheiro que não se pode descrever, nunca se esquece…
- O mar levou-me o teu caderno de capa preta, sabes?
- O meu caderno?! Não entendo!
- Fui à Missão, onde me ensinaste a gostar de livros. Eles destruíram tudo, mas o teu caderno de capa preta estava lá, intacto, no meio dos escombros…
- Ah, obrigado, meu amigo! Não sabia que o tinhas guardado!... – exclamou, com um sorriso que cintilou como um clarão, no azul da ilha. E fixou o olhar, num mar emudecido como um campo de batalha depois da luta.
Já a noite descia sobre Lampedusa, quando Montantu, deitado numa enxerga, e com o rosto vincado pela fadiga, conseguiu fazer a terrível pergunta:
- Salvaram … uma menina de vestido amarelo?
- Foram resgatados, com vida, vinte e um dos cem ocupantes do barco. Amigo, são todos adultos…
- Ah… Ela era linda! Ofereceu-me flores brancas…
Alfredo abraçou-o em silêncio. E, no reflexo dos seus olhos, Montantu sentiu-se, finalmente, resgatado do exílio.

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Desassossego


Amarra o sonho ao tronco
e não oiças o seu grito

Se o soltares, ele voltará
a cravar os dentes no teu sono

Queres o Fogo e os deuses
vingam-se, cravam setas
nas velas do teu navio
no espanto que te guia
na totalidade que se encontra
na mais pequena célula

Mas eu sei que tu rejeitas
a triste quietude dos felizes.

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OLHOS DE ESMERALDA


Seria de madeira, de vidro, de granito? Não sabia. Achava que não tinha alma. Na escola, ouvira falar de autos-de-fé. Podia morrer num deles, sem lhe doer nada… - pensava, com os seus olhos pestanudos e azuis rasos de lágrimas. - Ardia dos pés até à ponta dos cabelos e pronto! Mas ele gostava de ler e de inventar histórias. Quando fosse grande, havia de escrever um livro que começasse assim: Era uma vez um menino que queria colo…Um livro em que se ouvissem os passos do padrasto, os gritos dele, os pontapés e os murros, e ele a fingir que não era nada e a fechar os olhos debaixo da cama, como se a mãmã lhe estivesse a contar a história do “Pinóquio” ou a do “Peter Pan”, e ele a voar para a Terra do Nunca… Mas a mamã não tinha tempo e já lhe dissera que o Rui devia ser mais simpático para o “pai”, que era dono de uma boa empresa, com dois carros e um descapotável de luxo, mas ele não sabia dar valor a coisa nenhuma e ainda havia de acabar a pedir esmola nas ruas.
Agora, que era crescido, já podia ler, mas chorava com as histórias do “Capuchinho Vermelho” e do “Patinho Feio”. Sentia-se desajeitado como ele. Não sabia nadar na solidão. Estava sempre a ir ao fundo. Um dia, também havia de fugir, à procura de um lugar no mundo. Precisava crescer. Era urgente. Achava que o tempo tinha parado. As suas mãos estavam sempre do mesmo tamanho e o espelho da casa de banho continuava “lá no cimo”, fora do seu alcance. Assim, nunca mais podia atravessar a floresta, sem ser devorado por aqueles olhos de lobo que o vigiavam a todo o momento. Ao ouvir os seus passos, por vezes, ficava a tremer e a bater os dentes, gelado até aos ossos. E estava cansado de ter “culpa” de tudo. Para a mãe, ele era… como “um gato preto que só lhe dava azar”. O “pai” já tinha estado quase a deixá-la, por causa dele.
No entanto, ele tinha um amigo que o espreitava no muro do jardim e que estava sempre pronto a saltar-lhe para o colo. Tinha uns olhos cor de esmeralda que interrogavam os homens. Era difícil erguer os olhos para os adultos. Geralmente, só ouvia as suas vozes, mas olhava, nos olhos, aquele gato preto, seu “irmão”. Naquele momento, achava que valia a pena viver e até tinha vontade de conversar, sem precisar de fazer aqueles desenhos horríveis, quando o psicólogo o queria obrigar a falar e ele continuava, teimosamente, calado. O seu “irmão” gostava de patinhos feios. E ajudava-o a crescer.
Um dia, o amigo de olhos de esmeralda foi atropelado, mortalmente, e ele chorou-o, em segredo, durante muito, muito tempo. Mais do que nunca, precisava que alguém ouvisse os seus soluços, que lhe vigiasse o sono, que apaziguasse os seus medos nocturnos, mas ele sabia que sonhava o Impossível e o que devia fazer era pedir perdão por existir.
- És um trouxa! Nunca hás-de prestar para nada! Não vales o que comes! – berrou, um dia, o padrasto, ao ver que ele não conseguia ajudá-lo a empurrar o automóvel, por mais dores que sentisse nos rins, por mais que esticasse os músculos dos seus pequenos braços… Viu que ele estava cego de fúria. Porém, naquele momento, não teve medo. Sabia que o seu silêncio o irritava, mas não estava preocupado com isso. Devia ser de madeira, de vidro, de granito, sabia lá…Se não prestava para nada, se não valia o que comia, teria de inventar uma história em que pudesse ser útil a alguém, para se sentir melhor consigo mesmo. Já tinha escrito algumas, às escondidas, e a professora até lhe disse que ele tinha “muito jeito”. Se a vida e a escrita fossem a mesma coisa, ele ainda havia de viver tudo o que lhe tinha sido negado, experimentar o sabor de palavras como colo, beijo, abraço, sorriso, brinquedo, sol…
E o menino tornou-se homem. Um homem que ainda não sabia se era de madeira, de vidro, ou de granito. Sentia-se desajeitado como o patinho feio. Perante uma situação de fracasso, na repartição pública, onde exercia funções administrativas, dizia:
- A culpa é minha. Sou um incompetente.
Numa situação de êxito, murmurava:
- Tive sorte, muita sorte…
Rui tinha medo de sonhar e de ousar. Era, apenas, uma pequena partícula universal que podia aprender, mas não sabia abraçar. Aos dezoito anos, recorreu àquele emprego, para sair de casa, para ter um espaço próprio que não queria partilhar com ninguém, um espaço onde coubesse aquele grito que, às vezes, soltava durante o sono. Não conseguia descobrir a importância de estar vivo. Nenhuma água matava a sua sede. Nenhum pão matava a sua fome. Sentia a vida como um fardo imposto, desde os seus verdes anos. Sabia que “a Terra é formosa”, como disse Yuri Gagarin, o primeiro homem que a viu de fora, no espaço, mas a falta de afecto também a estava a minar por dentro. E o seu apelo de planeta mal amado era aquele seu apelo pungente de criança que ele ainda não tinha conseguido calar. Continuava a navegar num rio de perguntas, a tropeçar num “porquê” do tamanho do universo. Porquê os donos do mundo e os seus mares de sangue? Porquê as presas e os predadores? Porquê a matança de tanta gente inocente? Porquê a exploração abusiva dos recursos da Terra? Porquê o canto da sereia de uma falsa noção de progresso? Porquê o terror nos olhos das crianças e dos animais?
A incapacidade de viver o Natal que se aproximava estava numa fase de expansão acelerada que ele tentava conter, a todo o custo. “Via”, nos destroços, cabelos de criança e “ouvia” o silêncio letal que tinha devorado o seu riso. Estava parado no horror. Porque estava parado? Porque sentia o universo, prestes a rebentar, dentro de si, com dez mil milhões de galáxias? Porque se sentia angustiado, mais uma vez, com a aproximação do Natal, se um amigo já o tinha convidado para o viver em família? Não, não podia ser! O “patinho feio” não tinha já encontrado um lugar?
-O mundo precisa de cisnes. A beleza poderá salvá-lo. E pede-te que a escrevas –
- dissera-lhe um colega de trabalho que lia muito e dizia que não era mais o mesmo, depois de ter lido um livro…– Ah, como ele tinha razão! Encontrara o seu lugar no mundo. O lugar da escrita. Um lugar com olhos de esmeralda.

Maria João Oliveira

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- A poesia impar de Walter Cabral de Moura-


AO SILÊNCIO

O silêncio é instrumento
comparável ao esqui –
é passar e deslizar
cuidado aqui, não vá /
cair.

O silêncio é vertigem
ver, ouvir e não falar –
talvez por falto de assunto
talvez por muito sentir /
ainda mesmo que coce
no vão da língua uma impigem.

O silêncio é veludo
que veste de gala e zelo:
parece, pois, desmantelo
um não querer ficar mudo.

No mapa do meu teclado
há um tesouro: o espaço em branco
para mostrara cor do silenciar.

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PASSOU AQUI UM POEMA

um poema passante
andou por aqui:
lembrou-me um tempo
de sopros de flauta
que foi, evadiu-se
pra onde, não sei.
quis chamá-lo – ô poema!
me leva contigo aonde
tu fores, te quero seguir
mas ele, nem-nem,
passou e se foi
pra onde, não sei.
largado, meu corpo
se queixou de cansaços,
me fez cara má
e enfezado me disse:
– pois deixes que vá!
assim, me quedei
sem flauta e sem tempo
sem poema e sem nada
somente com o corpo
que sem graça repete:
– pois deixes que vá!
e eu, cá comigo:
pra onde, não sei.

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ARTE MENOR

Desta pedra tosca
de que fui formado
tento esculpir
um melhor retrato.
Ó bruta matéria
de magma e carste
em que o cinzel
tem dificuldade!
De onde vieram
tuas tais durezas,
donde foram expulsas,
de que profundezas?
Sendo tão precário
o material,
resultará obra
dúbia, parcial.
Há mais: contribui
pra não ficar bom
ter o escultor
limitado dom.
Nessas circunstâncias
a ninguém estranha –
melhor se a pedra
voltasse à montanha.

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VER


anda
corre
voa

longe
último
asas
fortes
rápidas.

lá,
vê:
tudo
foi
nada.


Poema Tardio


Ai de mim que cheguei tarde!
Como farei poesia
se está agora quase tudo dito?

Líricos poetas já estiveram aqui
que cantaram amores, umas solidões
além de abandonos, e beatitudes
versejaram enlevos e contemplações.

Trêmulos cantores já estiveram aqui
a solfejar revoltas, e desilusões
e cravaram facas, e rasgaram as roupas
e deixaram, lívidos, a mensagem atônita.

Báquicos amantes também não faltaram
que já bem louvaram corpos excitados
e já bem dançaram danças sensuais
e melhor gozaram e chegaram à paz.

Ai de mim que cheguei tarde!

Nada me restou, exceto estas palavras
que ninguém já ouve, que ninguém mais quer
que recolho, lento, como se amanhã
fosse um tempo findo que não haverá
e toda a poesia que pudesse ser
fosse ver, sentir e, enfim, calar.

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O DE SEMPRE


Foi quando morri. Apareceu-me um anjo.
Grande, sereno, imperturbável.
— Que fizeste lá?, perguntou-me.
— Nada. Alguma poesia.
— Isso muitos fazem, retrucou. Que mais?
— Respirei.
— Isso, mais ainda. Algo mais?
— Dormi, sonhei, o de sempre.

Olhou-me sem paixão. Era um anjo
(não havia como enganar-me,
embora não mo tivesse dito).

Fez menção de ir-se. Perguntei-lhe:
— E agora?
— Nada. É aguardar.
— Ele?
— Quem mais?
— É verdade que usa barbas?
Sempre achei esse fato extraordinário.

Quase riu. Mas era um anjo,
estava a serviço.
Voltou-me as costas, mas antes de ir
virou-se e disse-me:
— Toma. Vou emprestar-te.
— ?
— A antologia poética organizada aqui.
— ! !

E tirou, não sei de onde,
um grosso volume, que passou-me.
Grande, sereno, impassível.
Interpretei esse gesto como um ato de simpatia
(embora não me tivesse dito).
Após o que, foi embora caminhando,
nunca mais o vi.

Ainda não sei se Ele tem barbas.
Enquanto isso, tenho ocupado meu tempo
a ler o volume, a respirar,
dormir, sonhar, o de sempre.

Walter Cabral de Moura

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_ o dizer poético de Ana Merij _


_ para dizer adeus _

( para o irmão que virou horizonte)

foi ele ...
quem plantou esse embondeiro dentro de mim
ensinou-me a beber do sumo para engordecer alma
no tempo em que a vida corria azul sobre nossos dias


foi ele...
quem colocou em minha boca esse gosto de geografias
essa fome insaciável por descobrimentos de terras longínquas


foi ele...
quem escreveu minhas cartas de navegação
e esse querer absoluto de ser mar e navio


agora...
com um precipício dentro do peito
quando ausência ultrapassa o grito
quando a lua envelheceu
quando extinta a primavera

quem juntará meus fragmentos:_como puzzle?


por todos os deuses:
amordacem as sirenes
aquietem os sinos do convés
apaguem o marulho das vagas
calem esse silêncio salitre do adeus

quero somente cerrar as pálpebras dessa dor
quero purgar-me nas sombras do meu baobá
quero sangrar os versos até o suspiro final da poesia:
- porque para a morte não há metáfora!

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_pictografia_



[que pinte o primeiro verso,quem da vida-nunca provou advérbios...]


quero um poema que conheça d' águas os riscos

que caminhe sobre elas feito os barcos pescadores

biblicamente audaz, confiante como se fora cristo



quero um poema verde-lilás, sem medo de se afogar

como só sabem os oceanos em dias de fúria e maré alta

um poema que mergulhe nas ondas sem naufragar



quero um poema alado, que flane por trilhas de sabiás

que converse com eles e afine sua voz nas cordas do seu canto

melodiosamente, como se fora um seresteiro nas noites de luar



quero um poema que saiba o gosto do orvalho das manhãs

mas beba do fel, mergulhe nas dores, deslize entre labaredas

que no fogo sem se queimar, delire em febre terçã



um poema que ande no escuro com olhar de claridades

onde a vida caiba num ninho de passarinhos, no caldo da cana caiana

quero um poema :_ que faça surgir o impossível milagre!


*********


_ canção molhada de sal _


a palavra corta a tez da paisagem, corta o tempo
e minhas reminiscências, incisões que olhar bem sabe ler
corta essa dor tão sucessiva, textura de minhas raízes
! corta-me

ainda assim escrevo:
nas letras dos prantos e gritos de minha história
para doer-me nessa canção molhada de sal
para chover-me no pó das velhas estradas
nessa partitura cerzida com os fios da memória

ainda assim escrevo:
para soltá-la aos ventos nos céus de gaivotas
para que voe por horizontes escondidos entre montanhas
semeando essa dor- essa desesperança, em verdes trigais


e rasgo:
-para esquecê-la
-para esquecer-me


quem sabe amanhã, quando eu partir ...
alguém possa reescrevê-la sob a paz de madrigais
[ou ninguém- ou jamais]



*****************



_EfemerIdades_

o que é ...
assim permanece

consentimentos do tempo

a terra
a árvore
a lápide

tudo mais efemerIdades

o que sei
desfolha-se ao gosto dos ventos

perenes...
das aves o canto
dos lírios o branco

dádivasemeadas num qualquer campo

na bíblia do instante
na epístola das horas
nos pergaminhos das portas

o que não sei existe

por encurtamentos de olhares leio apenas o que deus permite

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_avant propos _

[ do dia que comi estrelas]



das estrelas que comi, vivo

nem doce- nem amarga, apenas sigo



furtaram o sorriso das manhãs

tal como de um descuidado pássaro, as asas

porque desconhece de armadilhas ou artimanhas


e do dia que nem chegou rasgaram todas as graças

como da inocente ave, aprisionada minha esperança

ficou somente esse gosto de estrelas na palavra escassa

nem doce- nem amargo:- no céu dos sonhos, um travo!


[das estrelas que comi-vivo, nem doce- nem amarga:
_ sigo! ]


nanamerij


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_ Luiz Delfino e o minimalismo dos seus di-Versos _


Aqui a chuva
ainda desce
mas não
esquece
de vir iluminada

II.

Da tormenta,
cada pingo,
um grão de areia
atingido

III.

O Sol
acima
abrasa
a nuvem.

A água
abaixo
arrasta
o monte.

A vida
sem
horizonte.

IV.

O céu azul,
portal
para a
eternidade

A terra
cinza
não é abrigo
é jazigo



de repente o sol surge,
a alegria vem,
mas amanhã....
é de ninguém

V.


Tudo está ficando bem,
no céu há doce cenário,
torrentes ainda nos vem
e todos em campanário,

assistem a construção,
na terra, que da água teve,
da mais altiva aflição
por tempo, morta de sede,

Barrancos, alguns deslizam,
a cinza camada verde,
das folhas que se balizam
no solo que ainda se perde.

Nas praças há sempre a graça,
de tudo parecer bem,
e de onde surgiu desgraça,
devassa se faz também.

Luiz Delfino

_ A palavra cosmopolita de Osvaldo Pastorelli _


A casa, pipa, grade e lanças.
Subo a pequena escada quase correndo, atrasado abro o portão e vejo o ônibus parado no ponto, mas acabo perdendo-o, tudo por causa da grade que foi preciso colocar na frente da casa. Fazia-se necessário, pois por duas vezes foi pego, uma vez um mendigo e da outra vez um rapaz meio drogado, dormindo na laje. Sem contar as outras vezes que foi preciso escorraçar um homem que entrou e já estava quase no quintal sem que ninguém percebesse, e além é claro, dos meninos que por uma pipa fazem de tudo, até perder a vida. A casa precisa é de uma boa reforma, colocar no chão e levantar tudo de novo. Lembro que tinha um jardim na frente e por culpa do progresso, precisaram alargar a avenida que já não suportava o transito, perdeu o jardim e foi soterrada, isto é, o seu teto ficou na altura da calçada, isso aconteceu com todas as casas do lado esquerdo da rua, pois esse lado foi o que mais sofreu com o alargamento. E agora essa grade que a deixou com aparência de prisão. Olho para cima. As lanças não foram colocadas. Lembrei do por que. E ri e no mesmo instante fui transportado para a sala de espera do pronto socorro do hospital. Ao meu lado estava um menino dos seus doze ou dez anos acompanhando sua mãe que viera tomar uma injeção por causa das dores no braço. Ele não parava de falar, serelepe, folheava um álbum de figurinhas de um desses desenhos japoneses que invadiram a televisão. E devido à espera para sermos atendidos, lógico, no entremeio da sua conversa com a mãe ele me contou o acidente com o seu amigo. Para pegar uma pipa o garoto, amigo dele, ao transpor uma grade ficou preso pela lança que furou sua coxa. O pobre do menino ficou pendurado até virem os bombeiros que tiveram que cortar a lança da grade sem tirarem o garoto que berrava de dor. O pior, falou a mãe, é que foi preciso segurar o endiabrado do menino para que ele não escorregasse e a lança acabasse perfurando sua coxa. Foi levado para o hospital com o pedaço da lança fincado em sua perna. O garoto contava isso como se fosse uma proeza, como se aquilo fosse à maior e melhor aventura que tivesse acontecido. Eu disse para ele, você ri porque não foi com você. Claro, respondeu ele, não sou tão burro como o meu amigo, eu não fui atrás dele como os outros, que ao verem ele enroscado na lança saíram correndo. Esse nunca mais vai correr atrás de pipa, eu falei. O senhor que pensa, respondeu a mãe, assim que se curar estará de novo correndo como louco, isso é o que eles são. Por isso que não colocaram lança, pensei ao dar sinal para o ônibus que vinha chegando.

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Amanhã será outro dia


O pensamento vai e volta
Ao ponto de partida
Talvez uma saída deseja
Não mais estar na peleja
Desta vida dura e torta

É um ir e vir constante
Sem que resolva a solução
Ou mesmo por um fim decente
A essa doida situação

Ao segurar tua mão
Na tua pele sinto
A minha pele fria
Nesse contato pressinto
A excitação que prenuncia

Mas você sua mão
Da minha retira
Sem conter a ira
Minha alma cai ao chão

E partido ela fica
No brilho do sol refletindo
Como estátua que se solidifica
Ao olhar da Medusa sorrindo

Remoendo a dor da distância
Vejo tua figura desaparecendo
Na poeira do tempo me corroendo
Ao findar do longo dia

Ao copo de cerveja a minha frente
Eu digo: não tem nada não
Eu tenho o meu violão
Amanhã será outro dia quente


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O CICLO


Amanhã é um novo dia.

Um novo dia de novas promessas
de renovar as velhas promessas
de alvorecer
de renascer de um novo eu

Um novo dia de essência
de verdades que com novos olhos
sentirei os verdadeiros sentimentos
da minha velha alma imortal

Um novo dia de sol mais belo
onde o canto dos pássaros
deixará a beleza mais pura
o vento morno mais cálido
e então verei a felicidade

Um novo dia que partilharei
o meu segredo contigo
o segredo de poucos dias
o segredo de muitos séculos
o segredo de poucos momentos

Um novo dia onde seremos uno
somente uno
e nessa estrada de júbilo
juntos venceremos os obstáculos
e então veremos a felicidade

Um novo dia é amanhã
dia de novos sonhos
dia de novas promessas

Hoje renovo as promessas de ontem
amanhã renovarei as promessas de hoje

Assim farei o ciclo interminável da minha vida
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que o olhar sonolento
das manhãs percorra
teu corpo descobrindo
tua beleza ao mundo
dos meus desejos
oferecendo-te
a beleza da vida

pastorelli

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_ A exímia escritura de Claúdia Magalhães _


Saltou da cama, temendo chegar atrasada. Era o dia do seu casamento! Ah, esse dia jamais será esquecido! A felicidade, assim como a tristeza, tem cheiro de fruta doce, pensou inspirando o suave odor do ar. Correu até o velho baú e retirou, com cuidado, seu velho vestido de noiva. Vestiu-se com dificuldade. O seu corpo agitava-se num vai e vem frenético. Estava, sempre, num balanço, tentando entrar em harmonia com o tempo. E nesse balanço, atingia vôos cada vez mais distantes. A porta do quarto foi aberta por um rapaz de rosto duro e frio, como todos naquele lugar. Não se importaria com ele, estava feliz demais para isso. Poderia, finalmente, reencontrar seu grande amor!
Em busca do seu coração, seguiu em direção ao pátio. Por que quanto mais queremos chegar a um determinado lugar, mais ele se torna longe?, pensou ao atravessar o longo e frio corredor. As pessoas, que por lá circulavam, não notaram sua chegada. Nenhuma alma. Nem grande, nem pequena. De nada adiantava expirar, com seu deslumbrante vestido branco, tanta felicidade. As pessoas não gostam do sucesso alheio. A felicidade, sempre, incomoda, pensou sentindo toda sua alegria pesar o ar.
Correu em direção ao que chamava de “pequeno jardim”. Nesse lugar, todos os dias, na mesma hora, o esperava sentada num banco, branco, de ferro, que ficava sob uma enorme mangueira. A vida é uma enorme repetição, pensou observando uma manga rosa, tão doce quanto seu coração, pendurada na frondosa árvore. Era a fruta mais bela que já vira. Precisava pegá-la, ela seria seu buquê e quando terminasse a cerimônia, a ofertaria ao homem amado. Ela representaria seu amor! Teria presente mais doce? Não, definitivamente, não! Ah, como o amava! Esse amor tomou conta do seu corpo e tornou-se seu universo. Não entendia o real motivo de ter sido abandonada por ele naquele lugar frio e autoritário, dependendo da bondade, indiferente, daquelas pessoas que entendiam, somente, de bulas de remédio. É certo que estivera completamente no escuro por algum tempo e que andara com as mãos no lugar dos pés, mas, agora, estava “recuperada”. Lutaria pelo homem amado. Subiria na árvore, mesmo que se machucasse. Seus arranhões seriam como uma carta de amor. Era necessário mutilar-se com algumas farpas para provar a grandeza do seu sentimento. Toda carta de amor deveria ser escrita na carne, com sangue, dessa forma, todas as promessas de amor virariam cicatrizes, acompanhariam todos nossos passos e jamais seriam esquecidas com o tempo, pensou ao subir na árvore. Alcançou a manga e colocou-a, com cuidado, no banco. Limpou o vestido. Arrumou os cabelos, jogando-os para o alto e, dando-lhes um nó, improvisou um rabo de cavalo. Estaria impecável quando ele chegasse. Depois de alguns segundos de silêncio, retomaria o fôlego e lhe daria um longo e caloroso beijo. Diria que o amava com loucura e sairiam, de mãos dadas, daquele inferno. Escreveriam uma linda história de amor no tempo e mostrariam as pessoas que o amor necessita de perdão. Pensou em como seria bom tê-lo de volta. Preparar com carinho suas comidinhas preferidas, fazer amor e adormecer em seus braços com a certeza da existência de coisas que nunca se acabam e que nos voltam mais fortes quando a esperamos com paciência e determinação. Limpou, novamente, o vestido. Desmanchou o rabo de cavalo e o refez com agilidade. Nunca estava bom o suficiente. O amor, também, é assim. Nunca é bom o suficiente. Por essa razão fora abandonada. Essa sua mania imbecil de querer tudo no seu devido lugar, de arrumar, incansavelmente, a louça, a casa, era uma prova do seu amor. Ao ter a certeza disso, ele a abandonou. Ele passou a odiá-la pelo simples fato dela o amar. Pegou a manga e observou-a com atenção. Nunca vira uma manga tão bela! Cheirou-a e, novamente, colocou-a sobre o banco. Tinha absoluta certeza de que, em algum momento, ela a faria sofrer. Todas as coisas boas nos fazem sofrer. Elas moram na esquina do amor com o ódio, concluiu com tristeza. Limpou o vestido, refez o rabo de cavalo, pegou a manga, cheirou-a e pensou com uma estranha surpresa: Nunca vi uma manga tão bela! Por duas horas, repetiu esse ritual, incansavelmente. Quando ele chegar, direi que o amo com loucura até a exaustão. Repetirei inúmeras vezes. A vida é uma grande repetição e usarei isso a meu favor, repetindo, somente, as coisas boas, concluiu com satisfação refazendo o penteado.
Faltavam poucos minutos para o pôr-do-sol, quando escutou o som de passos firmes. Eram eles. Malditos! Sanguessugas do inferno!, pensou sentindo um medo quase insuportável. Nesse instante, o céu fechou as pernas arrastando nuvens pesadas e cinzentas, e escondeu o seu azul mais profundo. Tudo ficou plano, reto, uniforme. Não havia estrelas, nem firmamento. Sumiram as cores e do arco-íris, somente o nada. Estava tudo acabado. Fechou os olhos e deixou-se molhar pela água que derramava em seu peito. Sem o seu amor, tudo seria somente chuva. Uma chuva que traria seu passado em relâmpagos, queimaria suas lembranças, reduziria tudo a cinzas, fazendo seu futuro fugir pela boca feito fumaça. Cantou em silêncio, vendo-o morrer arrastado pelo tempo. Olhou a manga e constatou que, em breve, ela seria apenas uma fruta podre ou, então, seria devorada por algum estranho. Soltou um terrível grito de dor. Não! Não deixaria ninguém meter as mãos no que tinha de mais doce. Aquela fruta era seu amor. Se alguém tinha que provar sua doçura, esse alguém seria ela! Devorou a manga e sentiu sua felicidade escorrer pelos dedos. Os dois homens observaram com uma estúpida frieza, por alguns segundos, aquela mulher de rosto inquieto, dando as costas à razão em nome do amor. Não entendiam que não existe nenhuma arma contra ele, somente uma defesa: a loucura. Essa fuga dos perigos da vida. É nesse repouso dentro de nós, que ela nos desmonta e nos torna vítima e algoz.
Deixou-se agarrar por eles. Não se moveu, nem falou nada. Tudo poderia ser usado contra ela. Atravessaram o longo e frio corredor. Deitaram-na na cama, deram-lhe alguns comprimidos e saíram. Nenhum sorriso, nenhum carinho. Não chorou, já estava acostumada com a frieza dos homens sem coração. Enfrentaria a insignificância dos momentos em que teria que viver como se nunca tivesse experimentado um grande amor. Não tinha escolha. Tomaria todos os remédios, faria todas as refeições, como um animal domesticado. No início, quando chegou naquele maldito lugar, tentou se rebelar, mas, tal qual um amor contrariado, todas as suas tentativas de se fazer ouvir foram usadas contra ela. Esperaria a próxima oportunidade e fugiria dali. As pessoas enlouqueceram. Elas não sabem mais amar, constatou com a loucura dos que amam demais.
Ele não apareceu. Teria mais uma chance? Não sabia. Restava-lhe sonhar. Talvez, a forma mais humana, mais justa, de viver. Nos sonhos, encontraria o poder da loucura, do seu lirismo, indispensável para alcançar o amor. Somente os loucos amam. Em algum deles, o reencontraria num lugar chamado poesia. E, com uma flor na boca, ele lhe diria, somente, palavras de amor. Ela escutou o barulho de risadas debochadas, dos enfermeiros, vindas do corredor. O mundo ignorava sua tristeza. Adormeceu chorando baixinho, sentindo o gosto, agora, amargo, do que já lhe fora doce, extremamente doce.

Cláudia Magalhães *******