sexta-feira, 2 de abril de 2010

_ A sinfonia poética de Naldo Velho _


A mulher que rezava em seu terço,
pedia benesses que eu nem sei se mereço.
Depois de algum tempo Deus respondia,
que cada pedaço de pão teria seu preço,
e que a paga mais justa era o amor que existia.

Ainda assim a mulher rezava em seu terço
e prometia oferendas, penitências, desvelo,
e pedia ao Pai um lugar ao seu lado.
Depois de alguns dias o Céu respondia,
que para cada degrau haveria um tropeço,
e que continuar no caminho já era um começo.

E assim a mulher guardou o seu terço,
abriu a janela, andou pelas ruas,
percebeu dores que não eram as suas.
Depois de algum tempo estendeu suas mãos,
amparou quem havia desabado em tropeços,
e aprendeu finalmente a caminhar entre escombros.

E então a mulher se lembrou do seu terço
e agradeceu ao Pai por viver dia a dia,
e a cada dia um tropeço,
e a cada tropeço um novo começo.

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POEMA DILACERADO

Por saberes, segredos, essências,
sacramentos sagrados, sementes,
sangue, suor e saliva,
saboreados assim indecentes.
As lágrimas que trago comigo,
são salgadas, veneno latente.

Silenciosa e insidiosa serpente
que na tocaia sibila contente.
Um bardo a buscar um consolo
num poema feroz e indecente,
cantou cantigas de um tolo,
afogou-se em tonéis de aguardente.

Um palhaço lamenta e chora
a desdita de um ser tão descrente.
A poesia que eu trago comigo
já não jorra da mesma nascente.

Profanei meus templos, faz tempo,
naufraguei bem próximo ao cais,
soçobraram os meus sentimentos,
só restaram alguns poucos ais.

Saberes, segredos, sementes,
sangue, suor e aguardente,
gotejando do canto dos lábios,
letras frias demais!

A poesia que restou sem abrigo,
versos tortos paridos gemidos,
só destoam e ainda que doam,
não conseguem trazer-me à paz.
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DE CIMA DAQUELE MIRANTE

E havia aquela chave
que abria todas as portas,
algumas eu evitava,
outras eu me obrigava;
mas existiam aquelas
que guardavam mistérios
e elucidá-los trazia sempre
um grande prazer.

E havia aquele quarto,
e a porta convenientemente entreaberta...
Por lá, a nostalgia florescia
e eu não sabia dizer o porquê.
A cama, a mesinha de cabeceira,
e nela uma jarra com água e um copo;
na parede um quadro sombrio,
monocromática visão
de algo que eu não entendia.

E havia aquela porta
corajosamente escancarada...
Lá fora: ruas confusas,
esquinas vadias, madrugadas impunes,
e o vício do orvalho
a contaminar meu coração.
Até hoje carrego as marcas,
cicatrizes que ainda doem...
Só não sei onde guardei a chave?
Mas não importa!
De cima daquele mirante
eu vou conseguir Te perceber

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CADA VEZ QUE ENTARDEÇO

O silêncio das almas, a espera inquietante,
o livro aberto em cima da mesa,
feridas cicatrizadas e um monte de incertezas.


As marcas do tempo, a rota dos ventos,
a cada passo colho pedras e espinhos,
dias e noites ao relento,
a face enrugada já não me deixa mentir.


Um rio de águas claras tem seu curso em meu quintal,
e do lado de lá, margem contrária de quem sofre,
um tempo, que eu pressinto, de delicadeza.


Cada vez que entardeço, atravesso um pouco mais.
NALDOVELHO

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- O quinto Canto- Sonia Regina _


Canto Quinto

A Cecília Meireles

Sonia Regina

Talvez mais que surpresa, espanto. Na sala estavam, além de Pingo, Manuela e Lúcia, uma cachorrinha preta com lacinhos lilases e D. Virgínia. Dona Virgínia? Então era ela a dona da cadela?

D. Virgínia ainda tinha ares de império. Branca viu de imediato o olhar altivo que sempre acompanhara sua fala direta e ríspida.

“Temos impérios vários, príncipes, imperatrizes, princesas (...). É o nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a valorização que damos aos nossos próprios méritos...” [1]

Foi difícil cumprimentar a visitante. Não conseguiu esboçar um sorriso e estendeu a mão, o braço recuando. Instantes intermináveis de um reencontro desagradável. Disse meia dúzia de palavras e retirou-se. Conversaria com a filha e a diarista à noitinha. Aliás, tinha uma resposta afirmativa ainda pendente e a conversa com Lúcia não podia passar daquele dia. Cogitou:

“Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.” [2]

Separou uma roupa e entrou no chuveiro, pensando em como conseguira se desvencilhar com serenidade. O barulho da água atrapalhava seus pensamentos, as lembranças se embaralhavam. Flashes de uma memória infantil se misturavam a recordações adolescentes, há muito adormecidas.

As pernas cansadas da caminhada pareciam pesar muitos quilos. O vapor tinha um ar de névoa sem serra. O sabonete derretia nas mãos de Branca e o perfume a enjoava. Enxaguou-se e deixou o banheiro, contente por ter reformado o apartamento. Havia porta separando o corredor da sala, havia porta protegendo sua intimidade.

Dona Virgínia era mãe de uma amiga de infância. Branca vivia por lá, brincando. As crianças freqüentavam as casas uns dos outros – as mães trabalhavam e as empregadas nada opunham. Tampouco tinham noção de que aquela permissão não trazia só alegrias.

O ânimo escapuliu e Branca recostou-se, enrolada no roupão. Molhavam o travesseiro, os cabelos daquela mulher cujos sentimentos afloravam em meio às lembranças insistentes.

À volta do fogão a conversa era animada. Relegada e muito educada para ir se enfiando no meio dos assuntos da amiga, da tia e da mãe, Branca permanecia parada na porta da cozinha. D. Virginia viu-a e perguntou se queria comer mais, com um jeito aborrecido e nada acolhedor. O empurrão daquele incômodo deixou-a constrangida. Balbuciou qualquer coisa acerca de que tinha ido entregar o prato e afastou-se. O canto perto do piano era um oásis, foi o solo firme onde se abrigou. Abraçou o irmão e jurou para si mesma que nunca mais deixaria que a ausência da mãe os deixasse desamparados. Naquele momento desabrochou em Branca uma força estranha: a menina-mulher criava raízes.

“Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.” [3]

Tinham oito anos, corriam pela casa, brincavam contentes. Felizes dias. Branca prendeu Sofia na varanda e ambas empurraram a porta de vidro, uma de cada lado. Foi o braço de Sofia que se rasgou, foi a alma de Branca que foi retalhada. As reprimendas de D. Virgínia, desordenadas e em intensidade impensável, falavam de culpa. Branca não voltou lá enquanto expiava o pecado de não ter sido ela a enfiar o braço pela porta de vidro.

“estava sempre em guarda contra os adultos. (...) Tinham a força ao seu dispor (representada por várias formas de agressão, da palmada ao quarto escuro, passando por várias etapas muito variadas).” [4]

Amigas, sempre, fizeram o vestibular juntas. Branca passou, Sofia não. ‘Como havia passado, se não havia estudado tanto quanto a amiga?’ Ouviu de D. Virgínia, ao invés dos parabéns esperados. O imenso ressentimento, tantas vezes declarado, atrapalhou a alegria de Branca com o sucesso. Resultado de uma crueldade difícil de acreditar.

Entretanto, “tudo é crivei. Principalmente o incrível. (...) A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.” [5]

Branca não acumulou fracassos, todavia. É profissional competente e respeitada, amiga querida, mulher amada. Até dos empregados recebe loas à generosidade.

Uma mulher que até ser adulta evitou o sucesso em qualquer área – pois ao invés de alegria poderia significar dor - vai mais leve para o trabalho, este dia. E nos demais. Saboreia olhar tudo e todos, identificada com o Rio de Janeiro:

“A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades.” [6]

* * *

Os textos em itálico são de Cecília Meireles. Pesquisa na página do Projeto Releituras http://www.releituras.com .

[1] Depois do Carnaval. In: Quatro Vozes. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998

[2] O Fim do Mundo. In: Quatro Vozes. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998

[3] Primavera. In: Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998

[4] Edmundo, o Céptico. In: Quadrante 2. Rio de janeiro: Editora do Autor, 1962

[5] História de uma letra. In: Cecília Meireles — Obra em prosa — Volume 1. Rio de Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998

[6] Compras de Natal. In: Quatro Vozes. Rio de janeiro: Editora Record, 1998


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- A poética forte de Lilian Maial _


BANDIDOS

...E sem imaginar qualquer despedida,
corremos pela cidade vazia,
saqueamos lojas,
atravessamos na contramão:
tu, com meu pulso nos lábios,
eu, com teu desejo nos olhos.
Deixamo-nos levar a favor do vento,
contra a corrente (de tráfego)
praticamos pequenos furtos:
eu, escondendo os teus sussurros,
tu, falsificando meus delírios.
Sorver teus respingos,
evaporar tua garoa,
pular do viaduto,
para te entregar, leve,
meu corpo à toa...

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VINTE LUAS

Vinte luas num céu tão negro.
São vinte luzes numa só claridade,
Madrepérola pendurada no céu.
Vinte luas num mosaico,
Nacaradas irmãs.

Um inebriar de cheiros de risos,
Timidez de estrelas-cadentes,
Fugidias palavras.

São vinte luas a confundir meus olhos.
Teus olhos como vinte luas.

Passam pedras brilhando anéis,
Passam pessoas nublando minutos,
Passam pedintes vendendo promessas.

E lá estão as vinte luas encarnando teimosia,
Que a lua esconde um segredo
(que o astigmatismo desvenda):
São vinte luas sobrepostas
A enganarem amantes,
A iludirem poetas,
A revelarem segredos.

Vinte luas nos teus lábios,
Todas sorrindo paixão.
Vinte luas nos teus dedos,
A me sussurrar poesia.

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Brincar com os poetas...



Para entender um poema com sabor de mel
há que brincar com o poeta.
Brincar com poeta é fazê-lo ouvir as letras.
Ele escreve a palavra, mas nem sempre ouve as letras.
Para ouvir as letras, há que ser surdo de regras,
cego de nomes,
mudo de risos.
Mesmo quando vê o vazio dos dias,
a lacuna de idéias,
a maldade dos homens.
Mesmo quando rabisca no peito um soneto,
quando entoa na alma a canção,
e insiste em ver, lá dentro,
solitário coração.
O poeta é um velho levado,
meio senil, meio sério, meio assanhado,
mexendo com as rimas fáceis,
sonhando com metáforas virgens.
É um idoso sem tempo,
que não solta e nem prende, somente.
Ele vira de ponta-cabeça todas as vezes que escreve.
Parece palhaço, parece parado, parece pirado.
Brincar com poeta é perigoso,
porque poeta leva tudo na ponta da faca,
na ponta da língua,
na própria palavra de dois gumes.
Poeta sonha que sonha,
enquanto diz as verdades e engole a peçonha.
Sem tempo ou lugar, poeta também gosta de brincar.
Ele brinca de estrela,
ele pisca a paleta,
ele chove no rio,
ele chora no mar,
ele pula a carniça que o verso mandar.
O poeta se esconde no pique da praça,
leva tombo nos cantos,
faz rir de pirraça.
Umas vezes é triste,
outra vez é moleque,
um tinhoso carente,
um castelo sem vela.
Ele finge que sofre,
ele mente que ri,
mas quando a noite chega,
ele olha pra lua,
ele rima comigo,
faz preces nos morros,
recosta na sombra,
que a noite é tão clara,
que o céu é tão grande,
que o sonho é tão logo,
que o sono já vem.
Brincar com poeta é conto de fada.
é cair na cilada de ver só o belo,
mas eu, a palavra,
a pena e o passo,
sou seca e cruel,
não brinco em serviço,
nem assumo compromisso.


Lílian Maial


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- A musicalidade da poesia de Eliana Mora _


Ilha de presenças e ausências
como areias que vêm e vão a contornar
em sua terra estranha
sem futuro
pura entranha se autofage

atrai espumas jóias flutuantes
enfeites
de mulher vaidosa a receber o mar
dor de não mudar a própria arquitetura
abrir portos às nações
acomodar-se para enfim ficar
sem abrir lenços brancos em busca
de socorro

anseios e desejos de deixar
estrada e curva a mesma trilha
sem mudança
como ali a vida parecesse começar
instinto vegetal e animal
caos interno
tecla mater
bate
bate e finca na espinha dorsal
a inscrição do DNA

medo do encontro com o sentimento ancestral
ou simplesmente sal na língua
no mistério
no útero do mar

nesta e nas vidas de um seio mater mãe
teclado dedos
terra

[aqui ficar

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Poder enxergar além do belo



com olhos fixos
na tela desgastada
num pedaço de pano de atadura [de algodão, imagino]
vejo aparecerem figuras meio distorcidas
assim, pendendo para um lado, para outro,
para trás
polichinelos coloridos, saltitantes
de um palco que não há

poderia ser um deles,
por certo que sim

e por que não achar que o belo pode estar ali
justamente no que pende
no que vira
ou no que cai?
porque não tem espaço certo?

minha alma não possui
[assim como nenhuma]
a perfeição dos riscos de um esteta
mas isto nem importa
de verdade o que importa nela
é o que guarda
o que emana
o tipo de 'substância' que derrama ao ouvir algum
chamado

nada de perfeições
retoques maquiagens
fantasias
[ela que nos seja simples e fiel

e que por trás dos pequenos estilhaços nessa tela
possa ela nos ver
e delicadamente sempre ser
a prima-irmã de nossa consciência
viva

deusa dos céus na Terra
por todo o nosso Sempre

[inteira


Eliana Mora

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_A Implosão da Mentira de ARS _


A Implosão da Mentira

Affonso Romano de Sant’ Anna



Fragmento 1

Mentiram-me.Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes.Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.


Fragmento 2

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho.Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente.Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre.Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre.E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial? mente,
mente partidária? mente,
mente incivil? mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constróem um país
de mentira
-diária/mente.


Fragmento 3

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partin-
do do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percuso.


Fragmento 4

Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores

cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente.

Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.


Fragmento 5

Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.

E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva.


Texto enviado pelo Autor (Poema publicado no JB , quando do episódio do Rio Centro e em diversas antologias do autor. Está em “ Poesia Reunida” L&PM, v.2)

-Os contos da vida real de Belvedere Bruno _



Por onde andaria Henrique? - perguntava-se Marilda, em meio aos objetos deixados por ele quando de sua inesperada partida. Durante alguns meses, atribuíra a uma depressão sua mudança de comportamento. Quando ele colocou alguns dos seus pertences em uma mochila e saiu dizendo que iria desanuviar a mente, ela absorveu o fato como se ele precisasse de "um tempo". Não pensou que fosse algo definitivo, embora hoje analisasse o fato como puro ato de covardia.
O que mais a intrigava era ninguém saber do seu paradeiro . Parecia que se desintegrara no cosmos - pensava- com um sorriso forçado. Por vezes, tinha que refrear o impulso de sair pelas ruas gritando o nome daquele homem. Como pudera se enganar com seu caráter, se viveram tantos anos juntos e, em nenhum momento, ele demostrara comportamento oscilante ? Sempre dizia que Henrique fora um oásis em sua vida.
Era duro encarar as pessoas, pois não tinha respostas para a insólita situação. Buscava encontrar no passado algum deslize, alguma palavra, algum sinal que permitisse, ao menos, fazer uma ideia, por mais louca que fosse, acerca da ocorrência. Pensava nos inúmeros casos que já havia lido , como homens que iam comprar cigarro em boteco de esquina e nunca mais voltavam. Como poderia imaginar que, um dia , faria parte dessas estatísticas?
O tempo parecia voar. Um ano, dois , três ...
Agora , passados exatamente cinco anos sem que nenhuma pista fosse encontrada, Marilda tentava encerrar o ciclo. O que ainda a incomodava não era mais o desaparecimento, mas o desgaste emocional que sofrera fazendo conjeturas.
Com uma taça de vinho nas mãos, ouvia Diana Krall quando, subitamente, o telefone tocou. Do outro lado, uma voz inesquecível, que sempre lhe provocara arrepios, parecia ainda exercer sobre ela grande fascínio. Rememorando deliciosos episódios da juventude, riram, fizeram confissões, e ela sentiu-se à vontade para dizer que, há tempos, não se divertia tanto , pois havia esquecido o significado da palavra alegria.
Suavemente, ele pediu a Marilda que tentasse retomar aquela vivacidade que tanto o encantara. As palavras tiveram um efeito mágico sobre ela. E só então, Henrique, de fato, passou a ser cinzas, enquanto o fogo de uma nova paixão tirava Marilda daquele angustiante estado de desviver.

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O homem e as flores

Rosane não escondia sua insatisfação. Marcos sempre fora um homem de metáforas. Enquanto ela continha diques, enfrentava tsunamis e erupções vulcânicas, ele mastigava pétalas de rosas . Ela era ação. Ele, meditação. Puro antagonismo. Nunca se soube porque um dia decidiram que, ficar juntos, seria o melhor para equilibrar as diferenças . O tempo apenas as fortaleceu.
Rosane dizia : - Cansei de viver com um sonhador. Sou pé no chão, gosto de tudo às claras. Odeio subterfúgios ! Marcos respondia calmamente : - Retire as rosas pálidas do buquê e deixe apenas os botões .Aguarde o florescer.
- Rosane se inquietava, vociferando : - Raios! Você com essa eterna mania de poesia! Estamos falando sobre a vida, o dia-a-dia, o desgaste de nosso relacionamento e você só raciocina em forma de versos ? - Mas Marcos nunca abandonou o lirismo, avesso que era às coisas densas da vida. A poesia era o seu porto seguro. Morreria assim, mesmo se chegasse aos cem anos, dizia.
Crucial o viver daqueles dois amantes. Rosane era exuberante em sua clareza. Marcos se encolhia no constante degustar de flores.
Um dia, sem justificar o ato, Rosane destruiu o jardim da casa. No lugar das flores, surgiu uma piscina térmica altamente sofisticada. Marcos, engolindo suas lágrimas, deu adeus às rosas, tulipas, gérberas, palmas, samambaias e avencas.
Anos depois, num canto da casa, escreveria, em versos, a história de sua vida, alheio a tudo e a todos. Acompanhava-o um copo de suco de flores, com dois cubos de gelo .
Dos seus olhos, pingavam lágrimas perfumadas.

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Vinho branco

Sentado na cadeira que pertenceu a várias gerações da família, faço o inventário de minha vida. O que fiz com ela? Percorri os caminhos que deveria ou preferi atalhos? Aos noventa anos, já não tenho como modificar meus traçados, equívocos, rezas tortas... Sozinho, miro o firmamento. O ser humano envelhece, se encarquilha, mas, se não houver a mão do homem, os cenários da natureza nunca se desfiguram.
Gosto do vinho branco seco. Traz-me paz à alma. Meus filhos já se foram. Triste foi a morte da mais novinha, Mariazinha da Conceição, que a tuberculose levou. Coloquei nela uma roupa branca, com véu cobrindo o rosto e um terço entre as mãos. Nunca mais consegui sorrir como antes. Meu riso ficou preso.
A mulher envelheceu antes do tempo, foi murchando, sequer notou a ida dos filhos. Sofri a dor da morte dos cinco, enquanto ela ia se encolhendo na cama, me deixando só. Uma tarde sorriu, olhou para o teto suspirando e morreu. Nem senti falta porque, na verdade, ela já havia morrido há trinta anos.
Fiquei neste casarão sozinho. Não gosto de estranhos, nem preciso que cuidem de mim, pois tenho pernas e braços. Monto a cavalo, cozinho, lavo e passo. Empregado é pra cuidar dos bichos, da terra e do trabalho pesado da casa.
Cheguei a pensar numa nova companheira, mas desisti. Nasci pra ser só. Não gosto de vozerios, confusões, e as pessoas sempre trazem essas coisas. Os vizinhos moram longe. De quando em vez, recebo visita. Trazem compotas de frutas, vinhos, pão de aveia. Não gosto de desfeitear e aceito, mas digo que visita não pode passar de meia hora. O que a vida ainda quer de mim?
Rasguei todas as fotos que havia por aqui. Quem ficaria com elas após minha morte? Não tenho herdeiros, os vizinhos acham pecado queimar lembranças e, as fotos, dizem que têm alma... Já doei todos os objetos de valor para a igreja. Meu maior apego é com aquele Sagrado Coração de Jesus em louça que tenho na parede da sala. Ainda não sei o que fazer com a casa. Tenho tempo pra pensar.
Leio muito bem, nenhum problema pra enxergar, nunca fui a médico, tenho uma saúde de ferro, mas um dia virá o sono eterno. Para onde vou? Como será a morte? Penso que acordarei no céu, vendo meus cinco filhos, mas, por conta do que Conchita me fez, peço a Deus Todo-Poderoso que me livre dela na outra vida. Que continue encolhida no além...
Vou tomar uma tacinha de vinho pra me ajudar a dormir. Os fantasmas às vezes aparecem e me tiram o sono. Nunca matei ninguém, apenas dei ordens. Cada cabra safado que encontrei na vida!... Chegaram a matar dois de meus filhos. Dei ideia para queimarem eles. Sobrou só pó. Ri e joguei no charco. Quem sabe eles agora cismaram? Deixa isso pra lá! Tô velho demais pra me preocupar com esses assuntos.
Não sei por que ainda estou por aqui. Acordo e fico o dia todo olhando a paisagem; como, escuto rádio, ponho uns discos que já estão chiando de tão velhos... Que cansaço anda batendo em mim ao cair da tarde! Me enrosco nas cobertas e vou dormir. São cinco horas e ainda há sol. Vou tomar meu vinhozinho branco, ler meu livro de rezas, depois dormir na santa paz. Nunca gostei de vinho tinto, por me lembrar sangue.
Que canseira me deu de repente, que sonolência estranha... Sinto frio, arrepios. Meus olhos se embaçam, pareço ver vultos, mas nunca tive problema de visão...
Estilhaços de garrafas e taças compunham o cenário final do inventário daquele homem.

Belvedere Bruno
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