sábado, 1 de maio de 2010

José Félix



terra da alegria

[miro]
havia um país na copa da árvore
preso nas asas de um pássaro mudo.
a pronúncia da fala ainda sangra
da buganvília que abraça no tronco

a língua que resiste renascida.
são ínvios os carreiros da palavra
longos os rios. são largos os mares
penosas as marés na flor das ondas.

tenho na camisa um poema às gaivotas
do deserto de atacama    respirar
um beijo e abraçar o sol caído
na sombra enquanto um peixe escama a água.

é outro sul de chuva no caminho
que me prende à terra da alegria.

****
o próximo vento

quando cheguei sabia
que ia partir no próximo vento
na canoa da folha desenraizada
da árvore em crescimento.
e nos ramos dela modelo um navio
com a proa às avessas.

       é que fazermos o contrário
       é irmos num rio
       em deserção à nascente das águas
       a força primordial das coisas
       o ressurgimento das andorinhas
       à voz balbuciada no início
       da prece em construção.

na tua voz pressinto o ciclo das sílabas
e no amor na açoteia
à luz da natureza    minha heroína
vais nos braços de tétis embalada
no sueste das ondas
silabando as palavras amornadas
sabendo onde estás não sabendo
para onde hás de ir.

na comunhão de verbos semeados
saboreamos os frutos de uma árvore
longínqua com raízes em pedaços
nos olhos reflectindo sóis e luas
cegueira iluminada de viagens
no sono comum de marinheiro.

e depois deste vento outro vento
carrega o navio de uma árvore
rotas traçadas nos ramos dispersos
o rumo da raiz

a copa é uma ilha inacessível
que ressurge nas águas com as marés.

****

à procura do idioma


uma corrente de ar atravessa a garganta
a dor e a febre crepuscular
desatinam o poema
e ao contrário dos dias úteis
a palavra declina a rouquidão
      um sentido de doença
      o amarelo de borges

a cegueira parece um mal menor

quando a infância percorre um país
adormecido    a cor insubstituível
descobre a copa das árvores
onde os olhos espreitam os frutos
no rumor da folhagem
a memória doentia
atravessa as páginas da árvore
carcomida
e um grito é um sussurro
que atravessa as águas como raízes
à procura do idioma    a seiva
que transporta à nervura do corpo ferido
a verticalidade proibida.

****
o idioma possível
há uma casa e um país à deriva
e o idioma possível é a infância
dos objectos na arqueologia
das estruturas. os instrumentos cavam
a árvore donde brota a água
de todas as nascentes
apodrecem os ramos que eu conheço todos os caminhos
e das flores suspensas cai o aroma
no sonho da semente fértil.
[ de José Félix]

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