quinta-feira, 1 de abril de 2010

- A poesia impar de Walter Cabral de Moura-


AO SILÊNCIO

O silêncio é instrumento
comparável ao esqui –
é passar e deslizar
cuidado aqui, não vá /
cair.

O silêncio é vertigem
ver, ouvir e não falar –
talvez por falto de assunto
talvez por muito sentir /
ainda mesmo que coce
no vão da língua uma impigem.

O silêncio é veludo
que veste de gala e zelo:
parece, pois, desmantelo
um não querer ficar mudo.

No mapa do meu teclado
há um tesouro: o espaço em branco
para mostrara cor do silenciar.

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PASSOU AQUI UM POEMA

um poema passante
andou por aqui:
lembrou-me um tempo
de sopros de flauta
que foi, evadiu-se
pra onde, não sei.
quis chamá-lo – ô poema!
me leva contigo aonde
tu fores, te quero seguir
mas ele, nem-nem,
passou e se foi
pra onde, não sei.
largado, meu corpo
se queixou de cansaços,
me fez cara má
e enfezado me disse:
– pois deixes que vá!
assim, me quedei
sem flauta e sem tempo
sem poema e sem nada
somente com o corpo
que sem graça repete:
– pois deixes que vá!
e eu, cá comigo:
pra onde, não sei.

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ARTE MENOR

Desta pedra tosca
de que fui formado
tento esculpir
um melhor retrato.
Ó bruta matéria
de magma e carste
em que o cinzel
tem dificuldade!
De onde vieram
tuas tais durezas,
donde foram expulsas,
de que profundezas?
Sendo tão precário
o material,
resultará obra
dúbia, parcial.
Há mais: contribui
pra não ficar bom
ter o escultor
limitado dom.
Nessas circunstâncias
a ninguém estranha –
melhor se a pedra
voltasse à montanha.

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VER


anda
corre
voa

longe
último
asas
fortes
rápidas.

lá,
vê:
tudo
foi
nada.


Poema Tardio


Ai de mim que cheguei tarde!
Como farei poesia
se está agora quase tudo dito?

Líricos poetas já estiveram aqui
que cantaram amores, umas solidões
além de abandonos, e beatitudes
versejaram enlevos e contemplações.

Trêmulos cantores já estiveram aqui
a solfejar revoltas, e desilusões
e cravaram facas, e rasgaram as roupas
e deixaram, lívidos, a mensagem atônita.

Báquicos amantes também não faltaram
que já bem louvaram corpos excitados
e já bem dançaram danças sensuais
e melhor gozaram e chegaram à paz.

Ai de mim que cheguei tarde!

Nada me restou, exceto estas palavras
que ninguém já ouve, que ninguém mais quer
que recolho, lento, como se amanhã
fosse um tempo findo que não haverá
e toda a poesia que pudesse ser
fosse ver, sentir e, enfim, calar.

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O DE SEMPRE


Foi quando morri. Apareceu-me um anjo.
Grande, sereno, imperturbável.
— Que fizeste lá?, perguntou-me.
— Nada. Alguma poesia.
— Isso muitos fazem, retrucou. Que mais?
— Respirei.
— Isso, mais ainda. Algo mais?
— Dormi, sonhei, o de sempre.

Olhou-me sem paixão. Era um anjo
(não havia como enganar-me,
embora não mo tivesse dito).

Fez menção de ir-se. Perguntei-lhe:
— E agora?
— Nada. É aguardar.
— Ele?
— Quem mais?
— É verdade que usa barbas?
Sempre achei esse fato extraordinário.

Quase riu. Mas era um anjo,
estava a serviço.
Voltou-me as costas, mas antes de ir
virou-se e disse-me:
— Toma. Vou emprestar-te.
— ?
— A antologia poética organizada aqui.
— ! !

E tirou, não sei de onde,
um grosso volume, que passou-me.
Grande, sereno, impassível.
Interpretei esse gesto como um ato de simpatia
(embora não me tivesse dito).
Após o que, foi embora caminhando,
nunca mais o vi.

Ainda não sei se Ele tem barbas.
Enquanto isso, tenho ocupado meu tempo
a ler o volume, a respirar,
dormir, sonhar, o de sempre.

Walter Cabral de Moura

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2 comentários:

  1. Que Poeta!
    Este blog é um espetáculo, só poetas de qualidade.
    Mas este me tocou mais profundamente.
    Não conhecia a Esquina, li a noticia no infy ,vou parar sempre por aqui...ah! se vou!
    Podem preparar uma cervejinha- serve tb. um destilado , ai não sairei mais daqui .
    O poeta boêmio

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  2. Muito bom o Poeta! É surpreendente a riqueza da Esquina!

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