quinta-feira, 1 de abril de 2010

Maria João Oliveira-


O Não-lugar de Montantu

Habitava o exílio, há muito, e enfrentava ainda as emboscadas da dor, à procura de uma luz na penumbra. A sua casa era uma velha bicicleta que tinha os seus próprios caminhos. Por vezes, levava-o à cubata de mãe Felismina que sorria, ao ouvir o som dos seus passos. Uma cubata que ele tinha erguido, a curta distância de um rio de pontes destruídas por armas, finalmente, silenciadas. Estava cansado de viver ao relento, com mãe Felismina e Runguinha, sua irmã. Um grupo de militares afectos à Unidade da Guarda Presidencial tinha queimado as cubatas e todos os haveres da população, para ali ser construída a pista de um novo aeroporto. Nem as enxergas, nem as cabaças para a água e outras bebidas, nem o almofariz de madeira de mãe Felismina tinham escapado à sanha dos militares. Mas o que mais lhes doeu foi a perda do único retrato de pai Joaquim, caldeireiro ambulante, homem corajoso e destemido na defesa dos mais pobres, que fora vítima de uma emboscada, durante a guerra.
- Montantu, filho, p´ra onde vais?
- P´rá cidade, mãe! Se não for, morremos de fome! Volto p´ró mês que vem…
Ao ouvir aquelas palavras, mãe Felismina ficou em silêncio e apagou-se, mais uma vez, num canto escuro da cubata, com as mãos cruzadas sobre um colo que também tinha embalado Daniel, o filho mais velho, que lhe contava tudo, até desaparecer, para sempre, no negrume da guerra. Na sua alma, latejava um pó acumulado de ilusões baleadas.
- Mãe, eu sei que Montantu lhe faz falta…Desculpa ser tão pequena! Mal posso com água e lenha… estendo mal roupa no capim… Me queria mais alta e velha como a senhora…
- Não diga isso, Runguinha! Deus lhe castiga! Não pôde meninar… e agora… queria ser velha de bengala como eu?! Estou cansada de estar viva, filha… Ah, e julga que pode desobedecer ao tempo? Não há precisão, Runguinha. Ele toma conta…
Montantu Luisão escutava-as, em silêncio, com o coração a bater-lhe violentamente, no pescoço. Os seus olhos negros pareciam duas brasas acesas. Ergueu-se, calçou apressadamente as sandálias e deu alguns passos em direcção à porta. Durante breves minutos, contemplou o rio, lá em baixo, como quem se despede, mas começou a caminhar em sua direcção. Transpirava, abrasado de calor.
- Juro que esta magreza de vida vai acabar! - murmurou. – Ah, Daniel… como tu e o Alfredo… me fazem falta!...
De súbito, estremeceu. De um bolso dos seus calções, caíra um pequeno caderno de capa preta que se afundou na areia quente da tarde. De imediato, dobrou os joelhos e ergueu-o, devagar, como se tivesse, nas suas mãos, um objecto sagrado. Apertou-o de encontro ao peito e voltou a colocá-lo no bolso. Ainda em sobressalto, olhou a linha do horizonte, como se ele tivesse paredes e precisasse de encostar o seu corpo. O sonho enchia-lhe os ouvidos de gritos de aves e rumor de ondas. Aspirava, como se fosse pela última vez, o cheiro quente do pequeno rio e aquele silêncio universal, cortado, de vez em quando, pelo canto de uma ave. Naquele momento, Runguinha correu para ele e abraçou-
-o pela cintura.
- Melhor não ir, Montantu…
O jovem mulato sorriu e lembrou-se dos tempos em que a sua irmã caçula lhe pedia que apanhasse estrelas para ela. Pensativo, acariciou-lhe os cabelos crespos e negros, mas ao colocar-lhe as mãos nos ombros, sentiu que uma ferida se abria, dentro dele, e mal reteve um grito. Os ossos roçavam-lhe a pele, mais do que nunca, sob o vestido azul de chita.
- Tem que ser, Runguinha…
Fustigado pelo sol quente e vermelho de África, Montantu Luisão partiu, na sua velha bicicleta, rumo aos parques sombrios da grande cidade, onde encontrava o pão que o sujava por dentro e o atirava, uma vez mais, para um exílio, em que se sentia fracturado e objectivado. Carregava o não - lugar desde a infância e a solidão tinha dedos metálicos, à volta do seu pescoço. Dedos que, no entanto, o empurravam para a busca de um lugar onde o seu ser estilhaçado pudesse libertar-se daquele sistema de morte e alcançar a “civilização da ternura”, de que lhe falava o missionário Alfredo, raptado pelos rebeldes, quando levava alimentos, para uma povoação faminta, no interior do mato. Tinha saudades do seu abraço, um abraço que lhe abastecia todos os vazios. E também daquele sorriso que fazia nascer a vida e florescer a esperança. Jamais podia esquecer as missas que ele celebrava, às escondidas, sob a abóbada das estrelas, no mato iluminado por archotes. Quando a notícia da sua morte correu célere pelas montanhas, sentiu-se culpado de ainda não ter pisado uma mina. Se soltasse, de repente, o grito que tinha dentro de si, encheria o mundo.
Um dia, também ele foi raptado, em plena estrada de terra batida. Sentia ainda o sangue quente do missionário Sílvio Fiorini que fez do seu corpo escudo, para lhe salvar a vida. Alguns meses depois, o seu irmão mais velho era assassinado. Pouparam a vida de mãe Felismina e Runguinha, mas as sementes e as ferramentas foram pilhadas. E colocaram, no ombro de Montantu, uma arma, cujo peso era uma espécie de ligadura que ainda o comprimia por dentro.
Mais do que nunca, sentia a urgência de partir. Porém, baloiçava entre dois pólos: a terra e o mar. Amava aquela terra vermelha e o cheiro dela, mas estava cansado de habitar, na sua própria pátria, um exílio permanente. Achava que o seu jovem país não era “inviável”, como muitos diziam. Contudo, aquela urgência corria dentro dele como uma hemorragia que já não podia deter. Sabia que aquele sonho já tinha assassinado milhares de africanos, mas comprou um lugar numa embarcação e partiu rumo à Europa.

Cheirava, finalmente, a mar. Porém, Montantu Luisão sentia a angústia como uma abóbada escura por cima dele, a separá-lo das cores, dos sons, dos cheiros de África… Olhava o céu alto e mudo, como se procurasse uma resposta. O sol brilhava sobre as ondas de um mar nervoso, inquieto, espicaçado pelo vento. As tábuas do barco rangiam debaixo dos pés e, à sua volta, corpos esqueléticos de homens, mulheres e crianças, disputavam o pequeno espaço do convés. Ao olhar aqueles rostos parados, esculpidos por longos anos de guerra, paciência e fome, deixou escapar uma lágrima.
Naquele momento, uma menina mulata, de vestido amarelo e olhos claros, ergueu-se, avançou para ele e ofereceu-lhe, em silêncio, um pequeno ramo de flores brancas, já murchas. Uma trança comprida aparecia debaixo de um lencinho vermelho de bolas pretas. O seu sorriso tinha a frescura de uma nascente de água e a beleza da inocência.
- São “beijos de mulata”… - esclareceu a mãe da criança, com ar de quem pede desculpa. Parecia que aquelas flores tinham nascido de uma dor calada que todos queriam esquecer. Por isso, se escondiam dela, tapavam os ouvidos, fechavam os olhos…
Movido por um assomo de afecto, Montantu dobrou os joelhos, tomou o rosto da menina entre as mãos e, em seguida, abraçou-a sem conseguir articular palavra. Apenas se ouviam as ondas a bater no casco da embarcação. Olhou à sua volta e apercebeu-se de que os seus companheiros de viagem sorriam, como se, naquele momento, o cheiro do suor e da angústia se tivesse diluído nas águas.
Naquela noite, conseguiu dormir algumas horas, e, ao acordar, reparou que o mar estava sereno, com a lua a espreitar através das nuvens. Porém, sentia, cada vez mais, a fome e a sede da distância. Lembrava-se da tristeza de mãe Felismina, do doce sorriso de Runguinha, dos amigos que andavam em muletas e daqueles que rasgavam as mãos, na dureza das minas e ficavam sepultados nos buracos, para sempre. Os seus olhos negros tinham voos de pássaro aflito. Levou a mão ao bolso, para sentir a textura acolhedora do caderno de capa preta, e para que a esperança entrasse na sua alma e já não saísse... Um dia, havia de voltar. Mais uma vez, abriu o caderno e, com o som do mar como pano de fundo, começou a ler, em voz baixa, a primeira página de um livro que não chegou a ser concluído:

Um cheiro que não se pode descrever, nunca se esquece. Entranha-se em nós para o resto da vida. E o teu cheiro, Mãe - África, acompanha-me e suaviza as minhas dores. Em ti, escuto o canto magoado da sobrevivência. És fogo que me atrai e transforma. Dás-me
as asas de que preciso, para subir, bem alto, por cima do vazio que me cortava, lá longe, como fio de navalha.
Os teus meninos pisam minas, ardem de febre e morrem de meningite, malária, diarreia. Os teus meninos têm a barriga inchada e os olhos fundos. O teu chão tem milhares de cruzes e milhares de corpos incompletos que gostavam de dançar Kizomba.
E sei que estás cansada de transformar em lenha as árvores que te davam frutos e sombra, porque não podes pagar o preço exorbitante de uma bilha de gás.
No entanto, agarras-te, com todas as tuas forças, a qualquer possibilidade de recomeço. Quando tens de te refugiar num acampamento, ergues-te e plantas flores, à sua volta. Flores e legumes que os soldados arrancam e levam. E quando, mais uma vez, te deixam de mãos vazias, procuras sementes, de novo…Por isso, quem sente o teu cheiro, não pode mais ignorar a viagem que ainda não fez, o convite do barco, o apelo do mar, o chamamento das tuas feridas…
Há quem pense que não tens asas, que não tens futuro, mas tu amas, Mãe-África! Por isso, transformas os obstáculos em trampolins. E os teus tambores fazem estremecer os mais cépticos. Um dia, poderás fixar os vampiros, nos olhos, e eles acabarão por recuar.

Agora… vou dar uma aula na escola da Missão. Amanhã, continuarei a escrever, para ti, Mãe - África…

Alfredo Rebelo, missionário

- Mas não escreveste mais, meu amigo… - murmurou Montantu, fechando o caderno, com a saudade cravada no peito como lâmina afiada. – No dia seguinte, foste raptado por homens armados...
Naquele instante, sentiu um arrepio, como quem entra numa estranha dimensão, ao ver que o sol se tinha escondido, subitamente. Em poucos minutos, surgiram nuvens carregadas de chuva e ventos ciclónicos. O ar arrefeceu e o mar rugia sedento de vítimas. A embarcação estalava com as investidas das ondas. Todos temiam o excesso de peso. E não tinham equipamentos de sobrevivência. Soltavam gritos, pedidos de socorro, mas só o estrondo das vagas lhes respondia. Já perto da costa, a embarcação afundou-se. E as pessoas morriam afogadas e feridas pelas tábuas desfeitas. Montantu sentiu-se arrastado a uma profundidade de quinze pés, mas, com duas fortes braçadas voltou à superfície. A menina… a menina do vestido amarelo, meu Deus! E o caderno... o…caderno… Deixou-
-se levar pelas vagas, mas, de repente, virou-se de barriga para baixo, tentando nadar para a costa, com todas as forças que lhe restavam. Uma corrente gelada atravessou-lhe o corpo, mas o seu desejo de viver levava-o a suportar, com energia, o intolerável. Pedia socorro, mas tentava libertar-se do pânico, para sobreviver.
De súbito, viu dois botes que vinham em auxílio dos náufragos, mas a boca encheu-se de água e, naquele momento, começou a desfalecer. Chocou contra qualquer coisa que já não identificou, mas ainda se apercebeu que o retiravam da água. Perdeu os sentidos, naquele instante. Alguns minutos depois, abriu os olhos.
- AL…ALFREDO!... Ah, o teu abraço! Estou… morto, não é verdade? Vieste… buscar-me, meu amigo!
- Não, Montantu Luisão! Nós estamos vivos, acredita! E não adoeceste! Como é possível?! Estou no Centro de Acolhimento, de Lampedusa, há muito. Está sobrelotado… - disse Alfredo, cabisbaixo, apreensivo, com os olhos verdes húmidos. - Vá, amigo, estás a tremer de frio. Vamos mudar de roupa.
Com o auxílio de um jovem tunisiano que já o tinha ajudado a salvar inúmeras vidas, Alfredo vestiu-lhe, rapidamente, um quente fato de treino, calçou-lhe uns ténis, secou-lhe o cabelo com uma toalha…
- E agora vamos ao refeitório… -disse, já em terra firme.
- Não… não posso… acreditar! Não te mataram?! – E o jovem ergueu-se, apoiando-
-se no ombro do amigo, com a felicidade a brilhar-lhe no rosto magro, de pele curtida pelo sol de África. - Não te mataram?! – repetia, atónito, cheio de júbilo, com a brisa do mar a sacudir-lhe os cabelos.
- Foi um boato! Os raptores acharam que eu tinha jeito para tratar dos seus feridos.-
- respondeu Alfredo, com um sorriso que lhe iluminou o rosto comprido de barba grisalha. – Só me libertaram, quando a guerra acabou.
- Tenho medo de ser deportado… Não quero perder-te, outra vez…
- Não vai ser fácil, mas confia em mim, amigo. Aqui, há turistas a tomar banhos de sol e cadáveres a boiar, à espera da polícia… As pessoas têm receio de falar. E há muitos imigrantes que são expulsos…Mas tu vais estar na ilha, só uns dias. Hás-de conseguir, amigo! Dobraste o cabo, terás a Índia! Vou contigo, mas ainda volto, porque há muitos naufrágios por aqui…
Naquele momento, o jovem mulato respirou fundo e, com um aperto na garganta, olhou o horizonte, no exacto ponto em que o mar se une ao céu. – Quando voltaria a abraçar mãe Felismina e Runguinha?
- Um dia, voltaremos à nossa Mãe - África, Montantu… Um cheiro que não se pode descrever, nunca se esquece…
- O mar levou-me o teu caderno de capa preta, sabes?
- O meu caderno?! Não entendo!
- Fui à Missão, onde me ensinaste a gostar de livros. Eles destruíram tudo, mas o teu caderno de capa preta estava lá, intacto, no meio dos escombros…
- Ah, obrigado, meu amigo! Não sabia que o tinhas guardado!... – exclamou, com um sorriso que cintilou como um clarão, no azul da ilha. E fixou o olhar, num mar emudecido como um campo de batalha depois da luta.
Já a noite descia sobre Lampedusa, quando Montantu, deitado numa enxerga, e com o rosto vincado pela fadiga, conseguiu fazer a terrível pergunta:
- Salvaram … uma menina de vestido amarelo?
- Foram resgatados, com vida, vinte e um dos cem ocupantes do barco. Amigo, são todos adultos…
- Ah… Ela era linda! Ofereceu-me flores brancas…
Alfredo abraçou-o em silêncio. E, no reflexo dos seus olhos, Montantu sentiu-se, finalmente, resgatado do exílio.

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Desassossego


Amarra o sonho ao tronco
e não oiças o seu grito

Se o soltares, ele voltará
a cravar os dentes no teu sono

Queres o Fogo e os deuses
vingam-se, cravam setas
nas velas do teu navio
no espanto que te guia
na totalidade que se encontra
na mais pequena célula

Mas eu sei que tu rejeitas
a triste quietude dos felizes.

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OLHOS DE ESMERALDA


Seria de madeira, de vidro, de granito? Não sabia. Achava que não tinha alma. Na escola, ouvira falar de autos-de-fé. Podia morrer num deles, sem lhe doer nada… - pensava, com os seus olhos pestanudos e azuis rasos de lágrimas. - Ardia dos pés até à ponta dos cabelos e pronto! Mas ele gostava de ler e de inventar histórias. Quando fosse grande, havia de escrever um livro que começasse assim: Era uma vez um menino que queria colo…Um livro em que se ouvissem os passos do padrasto, os gritos dele, os pontapés e os murros, e ele a fingir que não era nada e a fechar os olhos debaixo da cama, como se a mãmã lhe estivesse a contar a história do “Pinóquio” ou a do “Peter Pan”, e ele a voar para a Terra do Nunca… Mas a mamã não tinha tempo e já lhe dissera que o Rui devia ser mais simpático para o “pai”, que era dono de uma boa empresa, com dois carros e um descapotável de luxo, mas ele não sabia dar valor a coisa nenhuma e ainda havia de acabar a pedir esmola nas ruas.
Agora, que era crescido, já podia ler, mas chorava com as histórias do “Capuchinho Vermelho” e do “Patinho Feio”. Sentia-se desajeitado como ele. Não sabia nadar na solidão. Estava sempre a ir ao fundo. Um dia, também havia de fugir, à procura de um lugar no mundo. Precisava crescer. Era urgente. Achava que o tempo tinha parado. As suas mãos estavam sempre do mesmo tamanho e o espelho da casa de banho continuava “lá no cimo”, fora do seu alcance. Assim, nunca mais podia atravessar a floresta, sem ser devorado por aqueles olhos de lobo que o vigiavam a todo o momento. Ao ouvir os seus passos, por vezes, ficava a tremer e a bater os dentes, gelado até aos ossos. E estava cansado de ter “culpa” de tudo. Para a mãe, ele era… como “um gato preto que só lhe dava azar”. O “pai” já tinha estado quase a deixá-la, por causa dele.
No entanto, ele tinha um amigo que o espreitava no muro do jardim e que estava sempre pronto a saltar-lhe para o colo. Tinha uns olhos cor de esmeralda que interrogavam os homens. Era difícil erguer os olhos para os adultos. Geralmente, só ouvia as suas vozes, mas olhava, nos olhos, aquele gato preto, seu “irmão”. Naquele momento, achava que valia a pena viver e até tinha vontade de conversar, sem precisar de fazer aqueles desenhos horríveis, quando o psicólogo o queria obrigar a falar e ele continuava, teimosamente, calado. O seu “irmão” gostava de patinhos feios. E ajudava-o a crescer.
Um dia, o amigo de olhos de esmeralda foi atropelado, mortalmente, e ele chorou-o, em segredo, durante muito, muito tempo. Mais do que nunca, precisava que alguém ouvisse os seus soluços, que lhe vigiasse o sono, que apaziguasse os seus medos nocturnos, mas ele sabia que sonhava o Impossível e o que devia fazer era pedir perdão por existir.
- És um trouxa! Nunca hás-de prestar para nada! Não vales o que comes! – berrou, um dia, o padrasto, ao ver que ele não conseguia ajudá-lo a empurrar o automóvel, por mais dores que sentisse nos rins, por mais que esticasse os músculos dos seus pequenos braços… Viu que ele estava cego de fúria. Porém, naquele momento, não teve medo. Sabia que o seu silêncio o irritava, mas não estava preocupado com isso. Devia ser de madeira, de vidro, de granito, sabia lá…Se não prestava para nada, se não valia o que comia, teria de inventar uma história em que pudesse ser útil a alguém, para se sentir melhor consigo mesmo. Já tinha escrito algumas, às escondidas, e a professora até lhe disse que ele tinha “muito jeito”. Se a vida e a escrita fossem a mesma coisa, ele ainda havia de viver tudo o que lhe tinha sido negado, experimentar o sabor de palavras como colo, beijo, abraço, sorriso, brinquedo, sol…
E o menino tornou-se homem. Um homem que ainda não sabia se era de madeira, de vidro, ou de granito. Sentia-se desajeitado como o patinho feio. Perante uma situação de fracasso, na repartição pública, onde exercia funções administrativas, dizia:
- A culpa é minha. Sou um incompetente.
Numa situação de êxito, murmurava:
- Tive sorte, muita sorte…
Rui tinha medo de sonhar e de ousar. Era, apenas, uma pequena partícula universal que podia aprender, mas não sabia abraçar. Aos dezoito anos, recorreu àquele emprego, para sair de casa, para ter um espaço próprio que não queria partilhar com ninguém, um espaço onde coubesse aquele grito que, às vezes, soltava durante o sono. Não conseguia descobrir a importância de estar vivo. Nenhuma água matava a sua sede. Nenhum pão matava a sua fome. Sentia a vida como um fardo imposto, desde os seus verdes anos. Sabia que “a Terra é formosa”, como disse Yuri Gagarin, o primeiro homem que a viu de fora, no espaço, mas a falta de afecto também a estava a minar por dentro. E o seu apelo de planeta mal amado era aquele seu apelo pungente de criança que ele ainda não tinha conseguido calar. Continuava a navegar num rio de perguntas, a tropeçar num “porquê” do tamanho do universo. Porquê os donos do mundo e os seus mares de sangue? Porquê as presas e os predadores? Porquê a matança de tanta gente inocente? Porquê a exploração abusiva dos recursos da Terra? Porquê o canto da sereia de uma falsa noção de progresso? Porquê o terror nos olhos das crianças e dos animais?
A incapacidade de viver o Natal que se aproximava estava numa fase de expansão acelerada que ele tentava conter, a todo o custo. “Via”, nos destroços, cabelos de criança e “ouvia” o silêncio letal que tinha devorado o seu riso. Estava parado no horror. Porque estava parado? Porque sentia o universo, prestes a rebentar, dentro de si, com dez mil milhões de galáxias? Porque se sentia angustiado, mais uma vez, com a aproximação do Natal, se um amigo já o tinha convidado para o viver em família? Não, não podia ser! O “patinho feio” não tinha já encontrado um lugar?
-O mundo precisa de cisnes. A beleza poderá salvá-lo. E pede-te que a escrevas –
- dissera-lhe um colega de trabalho que lia muito e dizia que não era mais o mesmo, depois de ter lido um livro…– Ah, como ele tinha razão! Encontrara o seu lugar no mundo. O lugar da escrita. Um lugar com olhos de esmeralda.

Maria João Oliveira

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8 comentários:

  1. Ai, Maria JOão, a escritora sensível, que escreve "escandalosamente" bem! Como é bom me embriagar com suas letras! Obrigada por nos brindar com seu talento !

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  2. Obrigada, Bel, pela generosidade deste teu comentário.
    Como sabes, o Povo africano, injustiçado, há séculos, continua a ser vítima do imperialismo económico, político e cultural do mundo ocidental...
    Senti uma imperiosa necessidade de escrever este conto, embora saiba que não consigo encontrar palavras que possam traduzir o sofrimento daquele Povo.
    Porém, confesso que me senti feliz, há dias, perante a "raiva" de um leitor que "estava sossegado" e este conto tinha-o deixado "agitado",
    "incomodado" e com a sensação de que falava, mas não fazia nada, pelo que não sabia se o devia agradecer, ou se o devia amaldiçoar.

    Um abraço
    Maria João Oliveira

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  3. "O Não-Lugar de Montantu" É pena que histórias destas não atravessem os corações do poderosos. Como farpas espetadas em carne quente, este conto trás a realidade de vidas, pena que os diamantes, o ouro, o poder, falem mais alto. Não soubesse eu quem é a Maria João, pensaria que um jornalista tivesse escrito tal história, alguém que tomou como sua, a história de um povo. Um conto que me faz sentir raiva, por ainda não termos evoluído o suficiente e deixarmos que outros se apoderem do nosso corpo, sorte ainda que não se consigam apoderar da nossa alma, alma essa que parte, mas quer voltar. Faz-me doer ler histórias que são contos, mas contos que são verdades. O desespero, a separação dos nossos queridos, o abandonar a terra que nos viu nascer, ver morrer sem preceber porquê. Doeu-me ler este conto. Sei qu esta realidade está lá, lá longe como quem esconde o lixo atrás da árvore; sinto a dor destas pessoas, mas a distância atenua essa dor, só que eu não queria ter que sentir essa dor, queria que quem têm e quer o poder, sentisse o que eu senti quando li este conto, esta verdade. Não sei se agradeço por este conto, se maldigo "O não-lugar de Montantu" pois estava sossegado nos meus pensamentos e agora fiquei agitado, incomodado e de volta aquela sensação de que falo mas não faço nada. O texto propriamente dito, demonstra uma evolução na escrita, pelo menos para mim. Senti que estava a ler um autor já consagrado. É este o meu comentário. Zé. bjs

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  4. Zé, como sabe, eu queria escrever... para abalar. E ainda que isso só tivesse acontecido consigo, "O Não-Lugar de Montantu" já teria valido a pena. Obrigada!
    Abraço
    Maria João Oliveira

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  5. Maria João rejeita a triste quietude dos felizes. Inquieta-se e inquieta-nos com a não-sorte dos exilados em sua própria terra, os que habitam e transitam em não-lugares. Sua escrita, como boa arte, transforma em alento o desalento do que retrata.

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  6. Walter, por vezes, esta inquietação voa à procura de poiso, mas nunca o encontra (e para que serviria a paz?).
    Sempre me doeu o sofrimento de tanta gente humilhada e explorada que povoa os não-lugares e que sonha, em vão, o regresso ao lugar. No entanto, ao tentar escrever este e outros dramas, a Esperança está sempre na ponta dos meus dedos. Obrigada por ter entendido isto.
    O Walter não vagueia em redor do texto. Ao lê-lo, está dentro dele, pensa-o, transforma-o num lugar onde a mente e a sensibilidade do autor e do leitor podem convergir. Muito obrigada, Walter!
    Abraço
    Maria João Oliveira

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  7. Ai, Maria JOão, a escritora sensível, que escreve "escandalosamente" bem! Como é bom me embriagar com suas letras! Obrigada por nos brindar com seu talento !
    6 de abril de 2010 12:47

    Maria João disse...
    Obrigada, Bel, pela generosidade deste teu comentário.
    Como sabes, o Povo africano, injustiçado, há séculos, continua a ser vítima do imperialismo económico, político e cultural do mundo ocidental...
    Senti uma imperiosa necessidade de escrever este conto, embora saiba que não consigo encontrar palavras que possam traduzir o sofrimento daquele Povo.
    Porém, confesso que me senti feliz, há dias, perante a "raiva" de um leitor que "estava sossegado" e este conto tinha-o deixado "agitado",
    "incomodado" e com a sensação de que falava, mas não fazia nada, pelo que não sabia se o devia agradecer, ou se o devia amaldiçoar.

    Um abraço
    Maria João Oliveira
    6 de abril de 2010 17:28

    José Mota disse...
    "O Não-Lugar de Montantu" É pena que histórias destas não atravessem os corações do poderosos. Como farpas espetadas em carne quente, este conto trás a realidade de vidas, pena que os diamantes, o ouro, o poder, falem mais alto. Não soubesse eu quem é a Maria João, pensaria que um jornalista tivesse escrito tal história, alguém que tomou como sua, a história de um povo. Um conto que me faz sentir raiva, por ainda não termos evoluído o suficiente e deixarmos que outros se apoderem do nosso corpo, sorte ainda que não se consigam apoderar da nossa alma, alma essa que parte, mas quer voltar. Faz-me doer ler histórias que são contos, mas contos que são verdades. O desespero, a separação dos nossos queridos, o abandonar a terra que nos viu nascer, ver morrer sem preceber porquê. Doeu-me ler este conto. Sei qu esta realidade está lá, lá longe como quem esconde o lixo atrás da árvore; sinto a dor destas pessoas, mas a distância atenua essa dor, só que eu não queria ter que sentir essa dor, queria que quem têm e quer o poder, sentisse o que eu senti quando li este conto, esta verdade. Não sei se agradeço por este conto, se maldigo "O não-lugar de Montantu" pois estava sossegado nos meus pensamentos e agora fiquei agitado, incomodado e de volta aquela sensação de que falo mas não faço nada. O texto propriamente dito, demonstra uma evolução na escrita, pelo menos para mim. Senti que estava a ler um autor já consagrado. É este o meu comentário. Zé. bjs
    9 de abril de 2010 14:43

    Maria João disse...
    Zé, como sabe, eu queria escrever... para abalar. E ainda que isso só tivesse acontecido consigo, "O Não-Lugar de Montantu" já teria valido a pena. Obrigada!
    Abraço
    Maria João Oliveira
    9 de abril de 2010 15:47

    Walter disse...
    Maria João rejeita a triste quietude dos felizes. Inquieta-se e inquieta-nos com a não-sorte dos exilados em sua própria terra, os que habitam e transitam em não-lugares. Sua escrita, como boa arte, transforma em alento o desalento do que retrata.
    11 de abril de 2010 15:31

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  8. Maria João disse...
    Walter, por vezes, esta inquietação voa à procura de poiso, mas nunca o encontra (e para que serviria a paz?).
    Sempre me doeu o sofrimento de tanta gente humilhada e explorada que povoa os não-lugares e que sonha, em vão, o regresso ao lugar. No entanto, ao tentar escrever este e outros dramas, a Esperança está sempre na ponta dos meus dedos. Obrigada por ter entendido isto.
    O Walter não vagueia em redor do texto. Ao lê-lo, está dentro dele, pensa-o, transforma-o num lugar onde a mente e a sensibilidade do autor e do leitor podem convergir. Muito obrigada, Walter!
    Abraço
    Maria João Oliveira
    13 de abril de 2010 15:44
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