domingo, 23 de maio de 2010

Maria João Oliveira

Lugar alado

[AllenJones]

Aquele medo era estranho. Tinha de o transformar em manteiga como o sapo da fábula fez ao leite. Pensava sempre nesta história antes de sair de casa. Gostava de ter a persistência daquele sapo, mas não conseguia perder o medo dos olhos de lobo. Às vezes, encontrava-o no supermercado, a fazer compras como toda a gente, mas sempre à procura de uma boa história para levar no saco da sua imaginação. Nicolau conhecia muito bem a sua câmara fotográfica e fugia dela como o diabo da cruz. Para cúmulo, os livros daquele escritor eram conhecidos em vários países. A sua câmara tinha um visor múltiplo e as suas fortes imagens tornavam ofegante a respiração do leitor. E este acabava por descobrir que não se encontrava exactamente no lugar onde lhe parecia que estava. Nicolau sabia que corria o risco de se transformar numa personagem dos seus livros, porque aqueles olhos de lobo já o tinham observado, várias vezes, mas ele acelerava sempre o passo e atravessava a passadeira, para o passeio do lado oposto, onde se sentia mais confortável e seguro. Não queria que o escritor o metesse numa única sílaba. A sua linha de fuga estava bem traçada, embora os olhos de lobo fossem seus vizinhos.
Nicolau, solteirão inveterado, trabalhava numa empresa, há muito. Os números tomaram conta do seu pequeno mundo, mas, por vezes, sentia-se refém dos livros e obedecia aos seus chamamentos. Reparava até no seu ternurento gato branco e na bela mulher que lhe sorria numa foto carcomida pelo tempo. Durante alguns anos, a solidão não lhe pesou muito. No entanto, andava inquieto, nos últimos tempos. Não sabia o que se passava. E aquela vizinhança, por vezes, roubava-lhe o sono.
O escritor aparentava ter pouco mais de sessenta anos, era alto, magro e tinha um sorriso de criança que o fazia pensar. Não tinha família e a sua única companhia era a Ricardina, sua fiel serviçal de muitos anos. Tinha lido, num jornal, que muito se esperava ainda do seu permanente desassossego, da sua capacidade de ver para além do que os outros viam, da embriaguez que o rejuvenescia e tanto enriquecia a sua obra. Um dia, havia de descobrir aquele segredo. Ele teria mesmo olhos de lobo? Já era tempo de perder o medo. Tinha de ultrapassar aquela zona fronteiriça que o separava do seu famoso, discreto, mas muito atento vizinho.
E, um dia, bateu-lhe à porta. A sua pacata cidade dormia ao sol de Agosto, mas o Dr. Silvestre não tinha ido à praia e estava sempre de antena bem ligada a tudo o que o rodeava. Ao ver o seu vizinho, sorriu abertamente e convidou-o a entrar como se estivesse à sua espera, há muito.
- Estou aqui, mas… não quero que fale de mim nos seus livros.
- Eu sei, amigo. Fique tranquilo. Por que é que eu havia de falar de si?! Esteja à vontade. A Ricardina está em férias. Assim, ninguém vai refilar com pontas de cigarros e livros no chão…
- Quero cortar uma corda que tenho no pescoço, soltar um grito, sei lá… Devo estar a ficar doido.
- Se calhar, nunca esteve tão lúcido… - respondeu o escritor, olhando-o fixamente nos olhos.
- Sei lá…Não estou a enxergar bem o caminho. Só me apetece saltar a cerca como fazia um burro que o meu pai tinha, dizer ao meu patrão que já é tempo de descer aos nossos infernos e… ainda outros disparates que nem lhe conto…
Nicolau calou-se, subitamente, e olhou à sua volta com uma atenção subtil. Viu prateleiras embutidas nas paredes do escritório, repletas de livros. Num sofá de couro gasto, livros amontoados, jornais, revistas e um cinzeiro por despejar. O chão acolhia, generosamente, aqueles que já não tinham espaço nas prateleiras e na secretária. Todo o ambiente se subordinava aos livros, incluindo uma árvore em flor que baloiçava ao vento e parecia espreitar para dentro, através da janela.
- Sente-se e não se preocupe com os livros espalhados no chão. Quando são bons, eles sabem defender-se dos nossos pés e levam sempre a sua avante…
- Ah, sim! E pregam-nos cada partida, vizinho… - respondeu Nicolau com um longo suspiro – Mas diga-me uma coisa: por que é que não envelhece? Apercebo-me disso nos seus livros e no seu dia-a-dia, sabe? Que milagre é esse, vizinho?
- Talvez seja a embriaguez, amigo! Ela é a grande alavanca do mundo. O lugar da paixão. O lugar alado.
- Como?! Quero perceber tudo isso e tenho pressa. O culpado é também o Dr. Silvestre, pois leio os seus livros, há muito. Tenho pressa… - repetiu Nicolau, enquanto limpava, com algum nervosismo, o suor da testa . – Se calhar… tem razão. A… embriaguez…
- Só acredito em mim, se estiver apaixonado – interrompeu o escritor, salvando-o do embaraço da questão. – Sem paixão, não há curiosidade, nada avança, não há nada, amigo, nada! Só tédio. Não passamos de ostras contentinhas que não fazem pérolas. O prazer de ler e de escrever, por exemplo…Como pode um aluno descobrir tal prazer, se o professor não estiver apaixonado? E… sabe que mais? Estou contente, porque sei que já entrou um grão de areia na sua concha…
- Acho que tem razão. É por isso que estou aqui. A culpa é dos livros que tenho lido. E alguns deles são seus, repito! Os livros mudaram a minha vida, sabe? Não me reconheço. Tenho muitos lá em casa. E, às vezes, até me parece que eles olham para mim, à espera do momento de saltar das estantes como os tigres saltam da selva. Sinto que mudei, vizinho. Acho mesmo que… ainda vou procurar uma mulher que esteve à minha espera a vida toda. Ela tinha razão. Eu era muito prepotente, possessivo, tinha horizontes muito estreitos… Comecei a ler Bernardo Soares e há questões que não me saem da cabeça: “(…) Possui alguém o rio que passa? Possui alguém o vento que passa? Possuímos nós alguma coisa (…)?” A Júlia era uma mulher especial, mas lia muito, lia demais. E eu achava que as mulheres que lêem são perigosas. Quanto mais ela lia, mais questionava, mais rebelde se tornava, dizia até que não queria cuidar só dos filhos que tivéssemos, das meias, do fogão… Comecei a odiar os livros e, um dia, deixei-a a chorar numa estação de comboios. Não voltei e ela também não me procurou, durante todos estes anos, mas eu sei onde mora e… sei que… não casou. A sua pele já não é de veludo, mas a alma daquela mulher não tem rugas, Dr. Silvestre! Não tem rugas! Tenho a certeza! E eu ainda a amo, sabe? Parece mentira, mas eu hoje amo-a, mais do que nunca!
- Então do que está à espera, vizinho? Se os livros lhe pregaram essa partida, não perca mais tempo! Vá à procura dela. Sintam o cheiro da vida, apaixonem-se, embriaguem-se. E deixem em paz os cabelos brancos que até são bonitos soltos pelos ombros – riu o escritor, oferecendo-lhe um cálice de vermouth. E os seus endiabrados olhos azuis, naquele momento, enviavam-lhe piscadelas maliciosas. Atordoado, Nicolau aceitou o cálice com um sorriso e não proferiu palavra durante alguns instantes. Tinha a sensação de que estava a libertar-se dos círculos infernais de um mundo estreito que o sufocava, há muito. A vida pousara a mão sobre o seu peito e o coração estava em alvoroço.
- Agora entendo, vizinho…- murmurou Nicolau com uma lágrima colorida no canto do olho.


Maria João Oliveira

Um comentário:

  1. É saudável a embriaguez dos livros! Sobretudo, e fundamentalmente, quando se tornam 'lugar alado', quando nos libertam de medos que asfixiam a vida.
    O livro deve ser encontro com os outros e nós próprios. Da mesma forma que procuramos autenticidade nos relacionamentos humanos, também esse encontro deve surgir por empatia.
    A Leitura (e a Escrita) não se impõe, testemunha-se. E a Maria João sabe fazê-lo com delicada paixão!

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