domingo, 23 de maio de 2010

Bernardete Costa


As rosas da primavera

Era o que se podia designar um dia não; dificilmente escapava à carga negativa desses dias, mormente quando a chuva tombava das nuvens numa névoa cerrada e fria, originando sombras de uma indecifrável tristeza que se alapava à pele e à alma como uma lapa à rocha, porque as saudades lhe corroíam o corpo e o mais íntimo de si.
Por motivos imprevistos ficara remetida às quatro paredes da casa. A sua neta estava adoentada e prontificara-se a ficar com ela. Esse facto e a ameaça persistência e irritante da chuva que apostara em lhe transtornar o dia, impedira-a de fazer a usual caminhada pela avenida e receber a energia positiva da natureza de que tanto carecia. Assim, aproveitando o sono da criança, deitara-se no sofá bastante abatida, olhando pela ampla caixilharia os pássaros que, num voo atordoado, semelhavam acrobacias contornando os plátanos da avenida.
Filipa, a sua amiga de longa data, telefonara-lhe: possuía um dom especial, adivinhava-lhe os estados d’alma ainda que separada por alguns quilómetros, chamemos-lhe telepatia, capacidade mediúnica ou coisa que o valha. De imediato, algo na voz de Lara a preocupara, quase lhe adivinhava as lágrimas inundando-lhe as palavras.
Resolveu visitá-la, anda, disse, precisas de ar livre, receber a energia do mar, do vento, das árvores. Lara apontou a neta e as lágrimas rolaram de imprevisto como se uma nascente houvesse irrompido da penedia.
Que se passa contigo, perguntou, já um pouco assustada com aquela torrente de água.
Filipa sabia como Zé era um pouco bruto quando assumia atitudes e gestos e palavras incontroláveis duma dureza tal que magoavam Lara; a sua sensibilidade sentia-se ferida de morte nesses instantes, menos dolorosa seria uma qualquer ofensa física. Aliás, ainda que o achasse uma óptima pessoa, tinha de admitir, a acreditar em Lara, que ele detinha dupla personalidade.
Entrementes e duma forma convulsiva o pranto apoderou-se do corpo da amiga e Filipa achou que o ideal seria deixá-la exorcizar desta forma o sofrimento que, via-se, a tomava no momento.
Passado algum tempo, por entre os soluços que a sacudiam em espasmos, com o rosto congestionado, conseguiu articular, “não vale a pena…”.
Olhou-a com desconfiança. Porventura outra das crises da amiga relacionada com questões existenciais: martirizava-se com perguntas para as quais nem o conhecimento nem a espiritualidade lhe ofereciam respostas cabais, ou talvez tudo tivesse a ver somente com o afastamento que era evidente há uns tempos entre o casal e que começava a inquietá-la.
 “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, não te esqueças, disse, enquanto se chegava perto e a abraçava com um carinho muito especial, um sentimento antigo oriundo do princípio da adolescência.
Filipa, já perturbada e confusa com o choro imparável da amiga, o coração a querer adivinhar rupturas, desgraças, mortes… numa preocupação crescente, inquiriu o que se passava, e ela, “nada…nada…”
Alguma coisa tens que te apoquente, Lara; não se chora assim por coisa nenhuma!
Entretanto, Lara, com os olhos muito escuros e brilhantes das lágrimas que teimavam em assomar às janelas do rosto, vai deixando escapar alguns vocábulos, “estou perdida…apaixonei-me…”
Desassombrada, a amiga, “Outra vez, não! Não te vais deixar seduzir pela paixão, correr o risco de outra aventura! E acrescenta contemporizadora, deixa o tempo decorrer; ele aplacará esse sentimento, para mais… tão a despropósito na tua idade! Viste o que te aconteceu com o Zé? Também te apaixonaste, rompeste com tudo, pelo caminho semeaste dor e sofrimento. E depois?...Nunca foste feliz, completamente feliz, ainda que isso não exista”, murmura, inaudível, num sopro de nostalgia.
“Estou perdida…” repete como um robot, e as lágrimas a persistirem impetuosas, a subirem pelas escadinhas interiores dos olhos de Lara e a derramarem-se pelo seu rosto pálido.
A amiga, tenta reconfortá-la, “chora…chora…” e aperta-a no círculo dos seus braços. Talvez aquele rio de sal a purgasse por dentro ou de alguma forma sublimasse a angústia com que se debatia.
Até que Lara rompeu com aquele bloqueio que ameaçava sufocá-la, “não, não vou lançar-me no abismo da incerteza. Depois, num sussurro de água, falta-me a coragem para arrostar com tudo, novamente; a seguir, desabrida, além do mais, eu sei o que me espera: as primeiras desilusões, as primeiras palavras agrestes, as primeiras anulações…, e a indiferença e o desgaste a emergirem dolorosamente da rotina dos dias”.
Lara tenta ajudar, “vamos fazer umas férias juntas, vais-te distrair, esquecer…Vamos viajar, conhecer novos mundos, outras gentes…, o que sempre ambicionaste. Deixa tudo comigo. Eu falo com o Zé. Mas tens de me prometer: nada de telefonemas, de e-mails, de encontros fortuitos, rompes mesmo!”.
Lara reconhecia que era urgente desistir do seu grande e último amor se queria preservar a sua tranquilidade afectiva e até o seu equilíbrio financeiro. Porém, mais forte que a lucidez, a paixão dominava-a, “mas eu amo-o loucamente, desejo-o intensamente, este é o meu derradeiro e inebriante sonho…Mas tenho tanto medo, tantas dúvidas…
 Mas também sabes, persiste Filipa, que quando o desejo e o medo são exactamente os mesmos chama-se pesadelo ao sonho; e esse é o teu sonho transformado num pesadelo.
A ruptura que me exiges é como se me acordasses de um sonho profundo e feliz. Não, não sei se sou capaz, replica Lara, necessito de ouvir a sua voz, de ler as suas palavras, de o amar perdidamente até à exaustão plena dos corpos e das almas, como nunca me aconteceu.
Tem cuidado Lara, adverte a amiga, com mágoa. O que te diz a experiência? Já sabes como tudo se desmorona…para mais com os obstáculos que surgirão inevitavelmente pelo meio.
Ah, se ele pudesse estar mais perto de mim, se fosse possível os seus beijos de vez em quando, se fosse possível…, exclama Lara com enlevo, o olhar perdido no longe.
Já percebi que estás loucamente apaixonada, cega e louca como todo aquele que padece dessa miscelânea de prazer e dor que sublima e aniquila, comenta Filipa que já sentiu na alma e na pele a perda do seu grande e único amor. Vais esquecê-lo e relegar todas as lembranças comuns para o recôndito do teu coração, ainda que doa, porque vai doer a valer, eu sei. Tem de ser, amiga; não vais arruinar a tua vida, isso eu não admito!
Lara, trespassada pelo desencanto cruel da realidade, acaba por anuir com a aparente docilidade de um cordeiro. Apenas lhe restava, a partir desse momento, desejar o minuto em que fosse possível, liberta de todos os pensamentos, desembaraçar-se da própria memória.
A tarde estava soalheira, o céu cerúleo de fim de verão convidava a um passeio à beira-mar. A luminosidade daquela tarde especial estendia-se pela praia realçando o doirado das areias finas e envolvia a povoação com um halo de felicidade.
Rafael cingia-lhe os ombros, debruçava-se sobre os seus olhos semicerrados pela intensidade da luz e beijava-os carinhosamente.
Vamos até à esplanada. Tomas um café?
Contigo, amor, apenas quero estar contigo…mas posso, sim, tomar um café.
Era quase uma rotina, paradoxalmente uma doce e extasiante rotina: durante todo o dia, esse tempo sempre escasso, apoderavam-se um do outro: primeiro exploravam apressados os corpos, de imediato, retiravam as roupas que os asfixiavam e tombavam sobre o leito, sôfregos, mordendo-se mutuamente com beijos, orientando as mãos na exploração dos caminhos mais recônditos da pele. Depois ambos se humedeciam de prazer e luxúria…até que as nascentes rojavam e os rios transbordavam das margens por entre gemidos de delírio. Viviam aquele dia como se fosse o único, como se fosse sempre o último. 
Todo o tempo era escasso para vivenciarem aquele amor que os preenchia e os abrasava,” meu amor, meu amor…”, dizia-lhe Lara; e de novo pronto, o membro intumescido de Rafael procurava com avidez a entrada escaldante do corpo da amante.
Seguiam-se pequenos intervalos preenchidos por beijos, por carícias que ambos se empenhavam em fazer um ao outro. Ou então, vinha a lume alguma pequena controvérsia. Nem Rafael nem Lara abdicavam dos seus princípios, dos próprios juízos alicerçados numa lógica que nem sempre era unívoca. Lara acabava por prezar certo antagonismo que se gerava entre eles; racionalmente sentiam-se singulares, ainda que pela força do amor unidos num só como um prolongamento um do outro. Então, num desejo uníssono, procuravam o retorno a esse amor intransigente que lhes fervia nas veias; e essas pequenas querelas de imediato eram abafadas com sorrisos, beijos, e todas as loucuras que o amor inventa e permite…Finalmente, procuravam o silêncio e beijavam-se com o olhar perdendo-se comummente nessa ternura líquida e irreprimível que os inundava.
Depois de passado todo o dia juntos isolados do mundo e vivendo a intensidade do amor que os possuía num quarto de hotel, eles tinham um prazer especial em desfrutar alguns momentos ao ar livre, fazendo de conta que eram um casal normal em amena cavaqueira. Todavia os seus olhares, de onde aonde, prendiam-se um no outro e ficavam a navegar no enternecimento que deles emanava, até que um deles sorria com alguma gaiatice e retomavam a seriedade mais condizente com a normalidade que pretendiam evidenciar.
Pois, amor, são horas, não posso demorar mais.
Era invariavelmente a mesma situação. Marcavam um encontro, fruíam num hotel a sua ternura e o seu amor que juravam eterno como dois adolescentes, para depois cada um voltar à sua vida particular, ao seio da sua família instituída.
Um dia, com o desespero na voz, dissera-lhe Rafael: “não posso viver sem ti e não posso viver contigo”. A família que ambos prezavam e amavam, mormente os filhos, ainda que já crescidos, era uma amarra nas suas vidas..
Para Lara, já aqui se disse, uma experiência fracassada marcava-a a ferro e fogo. Como poderia cometer o mesmo erro? Ou melhor: como saberia ela se não se tratava dum idêntico erro?
Por sua vez, Rafael olhava à sua volta e constatava inúmeros casos de amigos e conhecidos seus, que, se a coragem não lhes faltasse, se pudessem voltar atrás, não cometeriam porventura os mesmos actos desencadeados pela paixão que também os exacerbara e cegara um dia.
Deste modo, Rafael, que já vivera algumas aventuras que considerara na altura avassaladoras, nunca acreditara poder um dia amar alguém… como sentia que amava Lara. Mesmo assim, o bichinho do medo espreitava a cada esquina dos seus pensamentos, da sua lucidez; longe de Lara a racionalidade dizia-lhe que “o amor é eterno enquanto dura”. Todavia, este era um sentimento tão absorvente que implicava uma tal dependência física e espiritual da amante que o transformava, como dizia, num molusco inerme. Contudo, e apesar dessa componente amorosa tão shakespeariana, um fiozinho de racionalidade puxava por ele e impedia-o que se lançasse no desconhecido. De certa forma, a pacatez sem surpresas do seu quotidiano, transmitia-lhe segurança.
Com Lara os sentimentos e as dúvidas não divergiam muito: havia uma necessidade constante de comunhão física e espiritual com Rafael, mas…Um MAS do tamanho do mundo ondeava sobre ela ameaçando naufragá-la numa contradição penosa de sentimentos.
Filipa, amparava Lara enquanto se dirigia ao automóvel. Esta, trôpega, sem vontade própria deixava-se conduzir.
Vês ao que chegaste?, pareces um farrapo…, tentas o quê, matar-te, por um homem? Repara bem no que te digo: não há homem algum que mereça o sofrimento duma mulher.
Lara olha para a amiga deitando-lhe um olhar sonolento. Não te ouço Filipa, não te quero ouvir…E acabou por tombar como um saco vazio no assento da viatura, imergindo num sono perigoso. A amiga levou-a célere ao hospital onde lhe fizeram uma lavagem ao estômago. Mesmo assim, o efeito da droga em excesso demoraria a passar. Só depois iria levá-la a casa. Entretanto precisava de inventar uma desculpa plausível quando telefonasse a Zé.
Lara e Rafael terminaram de vez. Porque nunca mais esta sugeriu um novo encontro e porque nunca mais este veio morar para perto dela. Faltara-lhe ao prometido, reconhecia Lara sentindo a acumulação de rancores na sua alma dorida, mesmo que tentasse desculpá-lo sempre que a amiga insistia, “vês como tinha razão?”, todavia no seu íntimo agradecia aos deuses a atitude de Rafael. Pelo menos a amiga não partira para um futuro incógnito e, quem sabe, para longe de todos os que a amavam.
O tempo decorria impassível, no entanto, anualmente, sempre no dia 21 de Março, o dia em que se haviam conhecido, Lara recebia em sua casa um frondoso e perfumado ramo de rosas encarnadas.
Os anos passavam e obviamente que Zé questionava a origem das rosas naquele 21 de Março, o 1º dia da Primavera.
Ela respondia com um sorriso travesso, disfarçando a melancolia que se lhe apoderava do coração, e cínica, “não imagino quem possa ser, talvez algum admirador da lisura marmórea da minha pele, do negro de seda dos meus cabelos, da minha cintura delgada de deusa, das mãos lisas intocadas pela artrose…, ou de alguém”, acrescentava num fio de voz já com um pequenino lago a enevoar-lhe a retina, “alguém que sabe da minha paixão por rosas vermelhas”.
Lara acreditava que o prazer é a maior de todas as dores humanas.
Depois, na tranquilidade solitária do seu quarto, apertava junto ao coração o ramo de rosas; febril, junto às suas narinas o perfume das flores inebriava-lhe os sentidos e as recordações de Rafael, vivas e plangentes, afloravam à memória, conduzia a sua mão pelos desalinhos do corpo, simultaneamente que a imagem amada se materializava a seu lado.
A carência de Rafael era tão lancinante que precisava dolorosamente do seu corpo no dela, de o sentir a pulsar no seu íntimo, e arrebatada por esse amor antigo, os orgasmos afluíam do recôndito dos seus rios extravasando em fluídos que sempre a surpreendiam… e extasiavam outrora o amante.
Os anos passavam serenos e as feridas cicatrizavam, ou assim semelhavam; Lara empenhara-se em redescobrir algum afecto junto de Zé. As reminiscências desse tempo de deslumbramento distanciavam-se para o esconso da memória, mal conseguia reter a imagem de Rafael que se transformava numa névoa ameaçando desaparecer como fumo pelo ar.
Por vezes, Lara era assaltada por uma mágoa profunda como uma raiz cravada na terra e não resistia; do fundo duma caixa velha como o tempo, retirava as folhas onde havia imprimido as mensagens apaixonadas. Aleatoriamente lia sufocada por saudades que doíam como um dente cariado “…queria beijar-te agora, como ambos gostamos, e abraçar-te ternamente, acariciando-te docemente para não machucar a frágil flor que tu és. Fica com os meus beijos eternos. Dorme bem, princesa, até amanhã. Adoro-te, amo-te, minha vida”.
Nesses momentos frágeis e cruéis das lembranças, uma dor fininha atravessava-lhe o coração como se uma serrilha o desfizesse em farrapinhos de sangue. Depois os netos entravam-lhe em rebuliço pela casa, avó isto, avó aquilo…e ela sorria com um sorriso triste que a perseguia como uma sombra pela vida em resposta às interpelações das crianças.
Naquele ano, como sempre no primeiro dia da Primavera, aguardava o tão ansiado ramos de rosas escarlates. Todo o dia vigiou expectante quem tocava à campainha, tentando escutar a frase há tantos anos repetida: Para a D. Lara, o ramo de rosas.
Avó, hoje não tens direito a rosas vermelhas, brincava Bruna já uma adolescente linda e atrevida. Anda avó, vamos dar um passeio pela avenida
Lara sentiu um zumbido na cabeça como o assobio de um eléctrico e recusou-se a sair de casa. Uma garra apertava-lhe o peito, e aquela dor fininha saía do coração, atravessava-lhe o maxilar, esvaía-se pelo braço esquerdo… e algo dentro de si se partia; num queixume de mágoa irreparável murmurou o nome eternamente amado. As lágrimas inundaram-lhe o rosto e tombaram sobre o vazio do regaço, o mesmo que, amorosamente, nunca mais recolheria em êxtase as rosas da primavera.

Bernardete Costa

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