sexta-feira, 2 de abril de 2010

- O quinto Canto- Sonia Regina _


Canto Quinto

A Cecília Meireles

Sonia Regina

Talvez mais que surpresa, espanto. Na sala estavam, além de Pingo, Manuela e Lúcia, uma cachorrinha preta com lacinhos lilases e D. Virgínia. Dona Virgínia? Então era ela a dona da cadela?

D. Virgínia ainda tinha ares de império. Branca viu de imediato o olhar altivo que sempre acompanhara sua fala direta e ríspida.

“Temos impérios vários, príncipes, imperatrizes, princesas (...). É o nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a valorização que damos aos nossos próprios méritos...” [1]

Foi difícil cumprimentar a visitante. Não conseguiu esboçar um sorriso e estendeu a mão, o braço recuando. Instantes intermináveis de um reencontro desagradável. Disse meia dúzia de palavras e retirou-se. Conversaria com a filha e a diarista à noitinha. Aliás, tinha uma resposta afirmativa ainda pendente e a conversa com Lúcia não podia passar daquele dia. Cogitou:

“Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.” [2]

Separou uma roupa e entrou no chuveiro, pensando em como conseguira se desvencilhar com serenidade. O barulho da água atrapalhava seus pensamentos, as lembranças se embaralhavam. Flashes de uma memória infantil se misturavam a recordações adolescentes, há muito adormecidas.

As pernas cansadas da caminhada pareciam pesar muitos quilos. O vapor tinha um ar de névoa sem serra. O sabonete derretia nas mãos de Branca e o perfume a enjoava. Enxaguou-se e deixou o banheiro, contente por ter reformado o apartamento. Havia porta separando o corredor da sala, havia porta protegendo sua intimidade.

Dona Virgínia era mãe de uma amiga de infância. Branca vivia por lá, brincando. As crianças freqüentavam as casas uns dos outros – as mães trabalhavam e as empregadas nada opunham. Tampouco tinham noção de que aquela permissão não trazia só alegrias.

O ânimo escapuliu e Branca recostou-se, enrolada no roupão. Molhavam o travesseiro, os cabelos daquela mulher cujos sentimentos afloravam em meio às lembranças insistentes.

À volta do fogão a conversa era animada. Relegada e muito educada para ir se enfiando no meio dos assuntos da amiga, da tia e da mãe, Branca permanecia parada na porta da cozinha. D. Virginia viu-a e perguntou se queria comer mais, com um jeito aborrecido e nada acolhedor. O empurrão daquele incômodo deixou-a constrangida. Balbuciou qualquer coisa acerca de que tinha ido entregar o prato e afastou-se. O canto perto do piano era um oásis, foi o solo firme onde se abrigou. Abraçou o irmão e jurou para si mesma que nunca mais deixaria que a ausência da mãe os deixasse desamparados. Naquele momento desabrochou em Branca uma força estranha: a menina-mulher criava raízes.

“Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.” [3]

Tinham oito anos, corriam pela casa, brincavam contentes. Felizes dias. Branca prendeu Sofia na varanda e ambas empurraram a porta de vidro, uma de cada lado. Foi o braço de Sofia que se rasgou, foi a alma de Branca que foi retalhada. As reprimendas de D. Virgínia, desordenadas e em intensidade impensável, falavam de culpa. Branca não voltou lá enquanto expiava o pecado de não ter sido ela a enfiar o braço pela porta de vidro.

“estava sempre em guarda contra os adultos. (...) Tinham a força ao seu dispor (representada por várias formas de agressão, da palmada ao quarto escuro, passando por várias etapas muito variadas).” [4]

Amigas, sempre, fizeram o vestibular juntas. Branca passou, Sofia não. ‘Como havia passado, se não havia estudado tanto quanto a amiga?’ Ouviu de D. Virgínia, ao invés dos parabéns esperados. O imenso ressentimento, tantas vezes declarado, atrapalhou a alegria de Branca com o sucesso. Resultado de uma crueldade difícil de acreditar.

Entretanto, “tudo é crivei. Principalmente o incrível. (...) A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.” [5]

Branca não acumulou fracassos, todavia. É profissional competente e respeitada, amiga querida, mulher amada. Até dos empregados recebe loas à generosidade.

Uma mulher que até ser adulta evitou o sucesso em qualquer área – pois ao invés de alegria poderia significar dor - vai mais leve para o trabalho, este dia. E nos demais. Saboreia olhar tudo e todos, identificada com o Rio de Janeiro:

“A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades.” [6]

* * *

Os textos em itálico são de Cecília Meireles. Pesquisa na página do Projeto Releituras http://www.releituras.com .

[1] Depois do Carnaval. In: Quatro Vozes. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998

[2] O Fim do Mundo. In: Quatro Vozes. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998

[3] Primavera. In: Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998

[4] Edmundo, o Céptico. In: Quadrante 2. Rio de janeiro: Editora do Autor, 1962

[5] História de uma letra. In: Cecília Meireles — Obra em prosa — Volume 1. Rio de Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998

[6] Compras de Natal. In: Quatro Vozes. Rio de janeiro: Editora Record, 1998


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2 comentários:

  1. Sozinha diante do PC começo a aplaudir... Quem me vê pensa em loucuras....Mas é pura admiração. Salve Soreg!!!!!!!
    Bjs

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  2. Salve, Bel, a mestra da prosa do cotidiano, que me lê as mentiras sinceras e aplaude.
    Fico feliz e honrada - e admirada, pois não mereço tanto.
    Obrigada pela leitura e comentário elogioso - e singular.

    Bjs mil

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