sexta-feira, 2 de abril de 2010

-Os contos da vida real de Belvedere Bruno _



Por onde andaria Henrique? - perguntava-se Marilda, em meio aos objetos deixados por ele quando de sua inesperada partida. Durante alguns meses, atribuíra a uma depressão sua mudança de comportamento. Quando ele colocou alguns dos seus pertences em uma mochila e saiu dizendo que iria desanuviar a mente, ela absorveu o fato como se ele precisasse de "um tempo". Não pensou que fosse algo definitivo, embora hoje analisasse o fato como puro ato de covardia.
O que mais a intrigava era ninguém saber do seu paradeiro . Parecia que se desintegrara no cosmos - pensava- com um sorriso forçado. Por vezes, tinha que refrear o impulso de sair pelas ruas gritando o nome daquele homem. Como pudera se enganar com seu caráter, se viveram tantos anos juntos e, em nenhum momento, ele demostrara comportamento oscilante ? Sempre dizia que Henrique fora um oásis em sua vida.
Era duro encarar as pessoas, pois não tinha respostas para a insólita situação. Buscava encontrar no passado algum deslize, alguma palavra, algum sinal que permitisse, ao menos, fazer uma ideia, por mais louca que fosse, acerca da ocorrência. Pensava nos inúmeros casos que já havia lido , como homens que iam comprar cigarro em boteco de esquina e nunca mais voltavam. Como poderia imaginar que, um dia , faria parte dessas estatísticas?
O tempo parecia voar. Um ano, dois , três ...
Agora , passados exatamente cinco anos sem que nenhuma pista fosse encontrada, Marilda tentava encerrar o ciclo. O que ainda a incomodava não era mais o desaparecimento, mas o desgaste emocional que sofrera fazendo conjeturas.
Com uma taça de vinho nas mãos, ouvia Diana Krall quando, subitamente, o telefone tocou. Do outro lado, uma voz inesquecível, que sempre lhe provocara arrepios, parecia ainda exercer sobre ela grande fascínio. Rememorando deliciosos episódios da juventude, riram, fizeram confissões, e ela sentiu-se à vontade para dizer que, há tempos, não se divertia tanto , pois havia esquecido o significado da palavra alegria.
Suavemente, ele pediu a Marilda que tentasse retomar aquela vivacidade que tanto o encantara. As palavras tiveram um efeito mágico sobre ela. E só então, Henrique, de fato, passou a ser cinzas, enquanto o fogo de uma nova paixão tirava Marilda daquele angustiante estado de desviver.

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O homem e as flores

Rosane não escondia sua insatisfação. Marcos sempre fora um homem de metáforas. Enquanto ela continha diques, enfrentava tsunamis e erupções vulcânicas, ele mastigava pétalas de rosas . Ela era ação. Ele, meditação. Puro antagonismo. Nunca se soube porque um dia decidiram que, ficar juntos, seria o melhor para equilibrar as diferenças . O tempo apenas as fortaleceu.
Rosane dizia : - Cansei de viver com um sonhador. Sou pé no chão, gosto de tudo às claras. Odeio subterfúgios ! Marcos respondia calmamente : - Retire as rosas pálidas do buquê e deixe apenas os botões .Aguarde o florescer.
- Rosane se inquietava, vociferando : - Raios! Você com essa eterna mania de poesia! Estamos falando sobre a vida, o dia-a-dia, o desgaste de nosso relacionamento e você só raciocina em forma de versos ? - Mas Marcos nunca abandonou o lirismo, avesso que era às coisas densas da vida. A poesia era o seu porto seguro. Morreria assim, mesmo se chegasse aos cem anos, dizia.
Crucial o viver daqueles dois amantes. Rosane era exuberante em sua clareza. Marcos se encolhia no constante degustar de flores.
Um dia, sem justificar o ato, Rosane destruiu o jardim da casa. No lugar das flores, surgiu uma piscina térmica altamente sofisticada. Marcos, engolindo suas lágrimas, deu adeus às rosas, tulipas, gérberas, palmas, samambaias e avencas.
Anos depois, num canto da casa, escreveria, em versos, a história de sua vida, alheio a tudo e a todos. Acompanhava-o um copo de suco de flores, com dois cubos de gelo .
Dos seus olhos, pingavam lágrimas perfumadas.

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Vinho branco

Sentado na cadeira que pertenceu a várias gerações da família, faço o inventário de minha vida. O que fiz com ela? Percorri os caminhos que deveria ou preferi atalhos? Aos noventa anos, já não tenho como modificar meus traçados, equívocos, rezas tortas... Sozinho, miro o firmamento. O ser humano envelhece, se encarquilha, mas, se não houver a mão do homem, os cenários da natureza nunca se desfiguram.
Gosto do vinho branco seco. Traz-me paz à alma. Meus filhos já se foram. Triste foi a morte da mais novinha, Mariazinha da Conceição, que a tuberculose levou. Coloquei nela uma roupa branca, com véu cobrindo o rosto e um terço entre as mãos. Nunca mais consegui sorrir como antes. Meu riso ficou preso.
A mulher envelheceu antes do tempo, foi murchando, sequer notou a ida dos filhos. Sofri a dor da morte dos cinco, enquanto ela ia se encolhendo na cama, me deixando só. Uma tarde sorriu, olhou para o teto suspirando e morreu. Nem senti falta porque, na verdade, ela já havia morrido há trinta anos.
Fiquei neste casarão sozinho. Não gosto de estranhos, nem preciso que cuidem de mim, pois tenho pernas e braços. Monto a cavalo, cozinho, lavo e passo. Empregado é pra cuidar dos bichos, da terra e do trabalho pesado da casa.
Cheguei a pensar numa nova companheira, mas desisti. Nasci pra ser só. Não gosto de vozerios, confusões, e as pessoas sempre trazem essas coisas. Os vizinhos moram longe. De quando em vez, recebo visita. Trazem compotas de frutas, vinhos, pão de aveia. Não gosto de desfeitear e aceito, mas digo que visita não pode passar de meia hora. O que a vida ainda quer de mim?
Rasguei todas as fotos que havia por aqui. Quem ficaria com elas após minha morte? Não tenho herdeiros, os vizinhos acham pecado queimar lembranças e, as fotos, dizem que têm alma... Já doei todos os objetos de valor para a igreja. Meu maior apego é com aquele Sagrado Coração de Jesus em louça que tenho na parede da sala. Ainda não sei o que fazer com a casa. Tenho tempo pra pensar.
Leio muito bem, nenhum problema pra enxergar, nunca fui a médico, tenho uma saúde de ferro, mas um dia virá o sono eterno. Para onde vou? Como será a morte? Penso que acordarei no céu, vendo meus cinco filhos, mas, por conta do que Conchita me fez, peço a Deus Todo-Poderoso que me livre dela na outra vida. Que continue encolhida no além...
Vou tomar uma tacinha de vinho pra me ajudar a dormir. Os fantasmas às vezes aparecem e me tiram o sono. Nunca matei ninguém, apenas dei ordens. Cada cabra safado que encontrei na vida!... Chegaram a matar dois de meus filhos. Dei ideia para queimarem eles. Sobrou só pó. Ri e joguei no charco. Quem sabe eles agora cismaram? Deixa isso pra lá! Tô velho demais pra me preocupar com esses assuntos.
Não sei por que ainda estou por aqui. Acordo e fico o dia todo olhando a paisagem; como, escuto rádio, ponho uns discos que já estão chiando de tão velhos... Que cansaço anda batendo em mim ao cair da tarde! Me enrosco nas cobertas e vou dormir. São cinco horas e ainda há sol. Vou tomar meu vinhozinho branco, ler meu livro de rezas, depois dormir na santa paz. Nunca gostei de vinho tinto, por me lembrar sangue.
Que canseira me deu de repente, que sonolência estranha... Sinto frio, arrepios. Meus olhos se embaçam, pareço ver vultos, mas nunca tive problema de visão...
Estilhaços de garrafas e taças compunham o cenário final do inventário daquele homem.

Belvedere Bruno
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7 comentários:

  1. Ah, Belvedere, que textos lindos. Você aprimorou seus textos nos últimos anos. Parabéns & Saludos. Maria José Limeira.

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  2. Querida Limeira

    A gente tem que ir aparando as arestas, não? rs
    Esforço-me bastante para evoluir nas letras, amiga. Conto com sua ajuda para prosseguir, ok?
    Bjs e obrigada.

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  3. Belvedere, li com atenção redobrada-hoje, e de fato sua escritura está num crescendo impecável!
    Que tal escrever um Causo?
    Lá para : Ensaios, contos, cantos e causos. Tenho certeza que sairá , um texto de total perfeição, pode ser cômico, satírico, como desejar.Bjs, anamerij

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  4. Valeu, Nana! Tô viciada na Esquina.....
    Bjs

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  5. Uma galeria de personagens muito interessante, Belvedere. Saber construí-los é o principal na criação de um conto, ou de um romance, não é mesmo? Parabéns!

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  6. Olááá, Belvedere linda. Para mim, é uma honra aprendermos uns com os outros. Há muito tempo que acompanho seu caminhar nas letras. Tanto na Prosa como na Poesia, você está muito bem. Saludos. Maria José Limeira.

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  7. Amigos
    Agradeço emocionada os delicados comentários aos meus textos. Vocês é que me impulsionam a escrever!
    Bjs

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